Subitamente A Vida
Ainda faltava pouco para o ângelus no fim da tarde, e todos os meus amigos haviam voltado para suas casas. Eu, ali no jardim da minha casa, vi quando ele, o pardal, apareceu. Era pequeno, frágil e delicado.
Meu instinto de menino que não tem dó de nada gritava ao meu ouvido: “Atira no pardalzinho! Atira no pardalzinho!” Sem sensação nenhuma de culpa, apanhei meu bodoque que a tantos passarinhos havia matado. Estava prestes a atirar em mais um.
De relance, senti um medo inexplicável. Vi, então, que entre mim e o pardal havia algo além de um menino e um passarinho. Descobri naquele momento a dor, o gosto amargo dos funerais. E tomado de um sentimento que me rasgava por dentro, joguei longe o bodoque.
Entrei em casa. Minha mãe com seu sexto sentido que todas as mães possuem, notou meu jeito triste.
- Que foi, menino? Brigou com os outros?
- Não.
- Fez tua tarefa da escola?
- Fiz.
- Desembucha, criatura! Que cê tem?
- Nada, mãe. Vou lá pro meu quarto.
Permitiria eu chorar? “Homem não chora!” Mas eu chorei e me senti péssimo nos dois sentidos da palavra. Primeiro, porque me achei cruel matando criaturinhas inocentes; segundo, porque me sentia muito mal mesmo. Que menino era eu que estava com pena do passarinho? Tantos eu matei, sem chorar por nenhum! Agora, estava eu a chorar no meu quarto. Fiquei até com medo de acharem que eu era um “maricas”. Ai, que vergonha!
Pela manhã fui para a escola. Tentei prestar atenção no que a professora falava, só para esquecer minha tristeza. Sem contar o medo de que alguém risse de mim. Bobagem minha, ninguém disse nada. Nem repararam que eu estava triste. No recreio, brinquei com os meninos. Foi um dia normal na escola, fora o que eu estava sentindo.
- Como foi lá na escola, filho?
- Bom.
- Que sem graceza!
- Falei que foi bom!
- Mas você ta esquisito!
- Cadê pai?
- Disse que ia chegar mais tarde. Disse que tinha um monte de coisa pra fazer no serviço.
- Hum.
- Acho que a gente vai ter que almoçar sem seu pai.
- Tá.
Meu pai nunca falava comigo, Eu parecia um estranho, e não um filho dele. Ele e minha mãe não brigavam. Pelo menos eu não notava isso, mas falavam pouco. Apenas o essencial. Jamais vi trocarem carinhos ou dizerem palavras de amor. Nunca.
A desculpa do meu pai de ficar pouco tempo em casa era o trabalho. O dinheiro que trazia para dentro de casa era pouco. Minha mãe, tão inocente, jamais perguntou por que ganhava pouco. Às vezes eu ficava em dúvida se eles brigavam ou não. Talvez fosse melhor acreditar que não.
Ele havia demorado muito para chegar. Então, minha mãe me mandou almoçar. Não sabia eu que minha vida teria outra mudança mais tarde. E que aquele passarinho que poupei a vida teria alguma responsabilidade nisso. Algo havia mudado em mim certamente. Eu precisava saber se era bom ou ruim.
Passaram meses, e chegaram, enfim, as férias de fim de ano. Meus pais resolveram viajar para o sítio de um amigo.
Tudo estava indo bem quando, numa tarde de sábado, meu pai me chamou para caçar com ele. Eu recusei e, claro, ele estranhou. Porque jamais neguei ir com ele a uma caçada.
- Então você não quer ir comigo caçar passarinhos, paca, preá?
- Não, pai. Não quero.
- Eu não vou só! E você vai comigo querendo ou não!
- Mãe, fala pra ele que não quero ir!
- Vai com seu pai, meu filho. Assim você se distrai um pouco.
- Eu vou. Mas não vou caçar nada.
E fui contrariado.
Meu pai preparou uma arapuca. Qualquer caça para ele seria bem vinda. Meia hora depois, ele conseguiu pegar uma pequena paca. Acho que se tratava de um filhote. Por um momento, ele teve que se ausentar. E eu, num impulso, soltei o bicho. Eu, que jamais fui piedoso com qualquer animal... Ai! Um “maricas” eu estava me tornando? Será? Acho que não. Eu era apaixonado pelas meninas da escola, da minha rua, dos filmes, das novelas... Que reviravolta era aquela?
Meu pai voltou e perguntou sobre a paca.
- Cadê?
- Escapuliu, pai.
- Como foi isso?
- Não sei.
- Fim dos tempos, os animais estão cada vez mais espertos!
- É sim, pai. (Ufa!)
Estava anoitecendo e voltamos pra casa sem nenhuma caça.
Meu pai estava diferente naquele dia. E eu estava feliz por estar perto dele.
O início do ano letivo foi bem interessante. Fiz novas amizades, conheci novos professores. Foi tudo muito bom. Eu estava disposto a estudar, a ser o melhor da classe em todos os sentidos. E consegui.
Houve na escola um prêmio para o melhor aluno. O escolhido ganharia uma bolsa para escolher o curso que quisesse. De graça! Eu, felizmente, fui o escolhido. Claro, meus pais ficaram orgulhosos.
Em casa, em meu silêncio, eu notava que minha família estava mais feliz. Era o que eu achava, era o que eu queria acreditar.
Hoje, 16 de agosto de 1984, muitos anos depois, estou casado com uma bela mulher, tenho dois meninos, que espero que sejam homens de bem no futuro. O mais velho tem quatro anos e o mais novo tem dois. Minha esposa é dona de casa. Ela escolheu assim. Eu me formei na Faculdade de Zootecnia, especializei-me em cuidar de animais domésticos. Tenho uma clínica veterinária. Sinto-me realizado, completamente feliz.
Estou agora, em meu escritório, lembrando da minha infância, e resolvi escrever essa pequena história da minha vida. Pulei algumas partes sem relevância; outras, esqueci. Minha clínica tem nome estranho, porém, de grande significado para mim. Escolhi nome composto, mas que nem existe no dicionário. O primeiro elemento da palavra tem amplo significado; o segundo, embora haja definição, dificilmente se pode dar uma explicação plausível. Entretanto, dentro de mim, eu sei o que significa o nome composto que formei. Minha clínica: VIDA-LIBERDADE.