Sem Nome
Era tarde, era muito tarde. O vento já não batia lá fora e ecoavam distante as motos, tão solitárias quanto ele. A cidade repousava de um dia turbulento e industrial, mas que nada possuiu de diferente: fora como todos os outros anteriores, e como serão aqueles do porvir. Pensar em como foi o dia era inútil, podia citar todos os acontecimentos, tarefas, conversas, discussões, horários - é e tem sido sempre o mesmo, em cada mínimo detalhe. E encontrava-se tão absorto na vida automática, quase maquinária, que o tédio já não incomodava, doía ou fazia alguma diferença qualquer na consciência.
A solidão material não era sentida, era quase não percebida. Ele é sozinho independentemente da presença ou não de seres alheios. Funciona numa sintonia própria, vive em uma concha, aprendeu que desvincular-se dos outros é o melhor a ser feito. Taxado de arrogante, esquisito. Blasé. Misantropo. "Ele não gosta de gente". Na verdade, eles que pensassem o que quisessem. Eles não sabem de nada.
Acendeu o cigarro. A fumaça distorcia o ambiente; dava uma característica não só física, mas criava uma atmosfera confortável, ainda que quase rarefeita. Para outrem, seria insuportável. Mas não para ele. Aquela metáfora realizada de uma vida inserida na podridão externa, porém tão rica em vida interna, mesmo que quase morta e incapaz de reagir a estímulos afetivos, aquela projeção metafórica no plano físico sendo realizada era extremamente satisfatória. Mas ao mesmo tempo que a atmosfera era tão poluída, era também bela - e que contraditório. Uma realidade particular, uma bolha onde ele e só ele estava inserido, realizada no plano material. Quantas metáforas, quantos significados, quanta satisfação esquizóide.
Tentava, tentava ler. Não conseguia. Seus pensamentos próprios eram tudo que podia ver. Chegou no segundo maço. E nem percebeu que fumou tanto. Mas tanto faz, essa vida que ele tem é tão miserável que encurtá-la é realizar um favor ao todo onde ele está inserido, ao todo do mundo, e da sociedade.
A garrafa, bem à frente, de vodca... Tão convidativa. E quando abriu os olhos, dois terços já foram bebidos. A ardência não foi sentida. Quando se vive uma eterna ardência metafísica, a dor dos sentidos passa desapercebida. Se lembrava tão vividamente das estações em que amou, foi amado e ainda via alguma beleza ao redor, em si e na existência do tudo. Como ela era bela... Não havia maldade. Qualquer dor não era forte demais, e a certeza mútua absorvia todas as pertubações do equilíbrio. Esboçou um sorriso: as formas na fumaça se pareciam tanto com as curvas daquela... - que era a mais linda de todas. A submersão na dor da perda não mais permitia explosões histéricas, o cinza absoluto reinava. A presença que um dia curou as dores mais profundas já não existe. Ela está a sete palmos do chão. Um lágrima escorre pelo rosto envelhecido, fica, por um instante, presa no queixo, e então desce para a garganta e se mistura com a pequena quantidade da bebida que derramou na gola da camisa. Estava sujo. Estava fedendo. Mas tanto faz. O sangue, nos antebraços escorria, e era tão belo. Sua densidade e cor vívida, tal qual uma pintua barroca, porém com temática expressionista, era tão agradável de se ver, enquanto o corpo, fraco, queria desistir.
Ao menos podia, neste momento infame e patético, abdicar de seu ateísmo e reconfortar-se com a idéia de que agora, finalmente, a encontraria naquele outro plano onde as coisas são supostamente belas e justas...