“Blin Blón”
Certo dia, Pedro decidiu visitar a casa da sua mãe, Dona Leopoldina, para tentar convencê-la de que ela necessitava de uma empregada doméstica, afinal de contas, seus 82 anos de idade estavam deixando as atividades do lar demasiado cansativas.
Num sábado de manhã ele foi à casa da velha. Lá chegando, abriu o sorriso e tacou o dedo na campainha.
“Blin Blón”
Dentro da casa o barulho era bem maior e ecoava. Dona Leopoldina estava no fogão, despejando duas generosas colheres de manteiga na frigideira, onde esperava fritar dois ovos. Nesse momento, seu coração encheu-se de alegria.
“Pedroca!”
Ela soltou a margarina na frigideira e correu para abrir o portão.
***
Dona Leopoldina ficara viúva já havia quase um ano. Antes disso, a casa era sempre cheia de visitas, de festas e de felicidade. Ela sempre fora uma dona de casa simples, mas nos últimos anos da vida do seu marido, tão sofridos por causa do Alzheimer, as coisas haviam ficado mais difíceis e ela não podia abrir mão de uma empregada doméstica. Depois de uma longa pesquisa, e dezenas de candidatas rejeitadas, finalmente contratou Neide, uma moça muito gentil, que cuidava do seu marido como se fosse uma filha. A filha que sua esposa não lhe dera.
No entanto, justo no dia do aniversário de 86 anos, na hora dos parabéns, Seu Pedroca resolveu morrer. Aí a velha surtou. A primeira reação, claro, foi derramar um oceano de lágrimas e dizer que ia morrer. Depois, já à beira da insanidade, pintou uma faixa preta enorme no muro de casa, queimou as roupas do velho e finalmente deu as contas da pobre da Neide. “Posso me virar muito bem sozinha”, dizia ela.
***
“Blin Blón”
Dona Leopoldina ia da cozinha para a garagem, andando rápido, curvada sobre a sua bengala de cedro. Atravessava a sala-de-estar, quando passou a mão pela cabeça e pensou: “Oh céus, devo estar toda descabelada!”. Vaidosa que era, deu meia-volta e rumou para o quarto, onde ficava o espelho e a escova de cabelo.
Lá fora seu filho esperava pacientemente. Para ele a perda do pai também tivera um impacto profundo, pois os dois eram muito parecidos, e muito próximos. Mas depois disso, por ser filho único, sentira-se na obrigação de cuidar da sua mãe. Só que ele não compreendia o que estava se passando: a cada visita que a fazia, Dona Leopoldina demonstrava cada vez mais não dar a mínima para a sua presença. Ignorava-o como se fosse um mero retrato pendurado na parede da sala...
A velha chegara ao quarto. Ao parar na frente do espelho, deu-se conta de que estava muito apertada. Pensou, "É melhor fazer logo xixi, já que estou tão perto do banheiro. Depois vou lá e abro o portão."
No banheiro, ao passar pelo espelho da pia, o reflexo chamou novamente a atenção para o cabelo desarrumado. Ela se olhou por um momento, pensou em ir logo fazer xixi, mas parou e continuou se olhando. Então voltou para o quarto para pegar a escova de cabelo. Enquanto isso, seu filho a esperava lá fora, pensando nos argumentos que usaria para conseguir dobrá-la. Porém, ao invés de achar a escova, Dona Leopoldina achou foi seu vestido de noiva, que mesmo depois de tantos anos ainda se mantinha perfeitamente conservado. Ao tomá-lo em mãos, suspirou nostalgicamente.
***
“Blin Blón!”
A campainha soou novamente e a fez voltar à realidade.
- Já vou, Pedroca!
Decidiu pôr o vestido em cima da cama, para depois dar uma olhada com mais calma. Ao fazê-lo notou que a cama estava bastante bagunçada. “É melhor arrumar pro Pedroca!”
Dona Leopoldina arrumou a cama com perfeição, e ao terminar suspirou aliviada. Já ia pro portão, quando a campainha tocou novamente e a fez lembrar-se do cabelo, que por sua vez a fez lembrar do xixi, que por fim a fez lembrar-se do vestido de noiva.
“Já sei, vou fazer uma surpresa pro Pedroca!”
***
Lá fora, depois de muito chamar, Pedro resolveu usar sua cópia da chave, que nem mesmo sua mãe sabia que ele tinha. Ao entrar na casa não estranhou o já típico silêncio, mas o cheiro forte de manteiga torrada o pôs em alerta. Foi até a cozinha, apagou o fogo e chamou:
- Mamãe!
Ninguém respondeu. Pedro sentiu um frio percorrer sua espinha. Saiu a procurá-la por todos os cômodos, um por um, e em todos que passava a única coisa que encontrava eram teias-de-aranha e camadas espessas de poeira por cima dos móveis, denunciando o abandono a que sua mãe se propusera.
Ao chegar ao quarto, ouviu uma música tocando baixinho, que escapava por debaixo da porta e trazia uma estranha sensação de perda ao seu coração. Ao entrar, deparou-se com a inóspita cena: Dona Leopoldina estava deitada na cama, vestida de noiva, de olhos cerrados, e com um leve sorriso estampado no rosto. Fotografias em preto e branco e polaróides de um colorido pálido se espalhavam ao seu redor. Entre os dedos imóveis, descansava a foto de sua tão remoída lua-de-mel em Havana, de onde trouxera suas mais doces lembranças. O mar, a areia, o amor... Todos os elementos pareciam se juntar melancolicamente ao seu sorriso num tom que nunca mais poderia ser recomposto...
Dona Leopoldina estava morta. Havia partido ao som de “Love me tender”, canção preferida do seu marido, Pedroca. A luz da janela incidia sobre o seu rosto enrugado e ela, no fim das contas, parecia feliz.