Bossa-estória
(enviado porém não selecionado no concurso de contos do estadão)
Naquele dia estava mais saudoso do que de costume. Não conseguia deixar de lado a falta que sentia dela, dos carinhos, dos pés gelados embaixo do cobertor. Nem da implicância com seu jeito de ser, com seus amigos, e até com os inimigos. Fato é que, mesmo com seus defeitos, afinal todos os temos, não deixou de amá-la e de pensar em como eram felizes na dor, já que a felicidade dos bons momentos era hors-concours. Aquilo doía, não permitia seguir.
Até hoje ninguém sabe se os contatos que mantinham eram reais, ou se era invencionice. Ele pouco ligava. Quando perguntavam, sempre dizia que estiveram em algum lugar ou que conversaram o dia inteiro, que haviam dormido juntos, que ela ajuda com o jantar, que o cotidiano estaria intacto. Mas a verdade é que Antônio, que sempre prezou pelo asseio, tinha sua casa ora imunda, ora somente desarrumada. Suas meias estavam furadas. Seus ternos, antes bem cortados, puídos. Era do tipo que não sabia fritar um ovo. Só restava ela.
Quando apareceu, perguntou o que tinha feito desde o último papo. Ele disse, simplesmente, nada. Logo soltou: “não quero mais esse negócio de você longe de mim”. Lígia respondeu que não havia possibilidade, os dois bem sabiam disso. Retrucou dizendo que existia sim uma solução, nas letras das músicas que costumavam escutar juntos e cantar um ao pé do ouvido do outro. Bastava resgatar aquele espírito do final da década de 50, quando tudo era possível, que as portas se abririam novamente.
Ouvindo seus discos (escolhidos pelo casal e comprados em comunhão de bens), percebeu que tudo estava escrito: o futuro deles não deu tempo, não teve piedade, chegou sem avisar e mudou tudo sem licença pedir. Ela disse então que a estrada da vida não permitia conhecer ou ver o que viria depois. Que o fim dessa ninguém poderia saber aonde daria. Irritado, deu um basta naquela conversa. É impossível ser feliz sozinho.
Imaginou sua viagem. Partiria sem avisar alguém ou deixar carta, lembrança, dica de onde ia. Mas daria um jeito de encontrá-la. Conversaram novamente e, apegado às mensagens contidas nas letras, disse que sabia, e ela também, que a distância não existia. Apostando no mesmo jogo, e lhe pedindo menos intransigência, ela argumentou que todo grande amor só teria esse tamanho se fosse triste. O bate-boca musical parecia sem fim, durando horas, até ele encerrar: não há você sem mim, e eu não existo sem você.
Escutou pela última vez aquela que era a música-tema de seu namoro, noivado, casamento e despedida. E que seria também a do reencontro. Deitou-se na cama desarrumada há dias, abriu seu livro, porém não conseguiu se concentrar. Sentia-se fraco, cansado. De repente, uma desconfortável pressão nas costas, que se difundiu pelo pescoço e braço. Suava, sentia-se nauseado. Mas preferiu continuar ali, imóvel, esperando. Um sorriso estampou seu rosto assim que se deixou desfalecer. Em questão de segundos, foi recebido com festa em seu destino, por sua amada. Chega de saudade.