SÁBADO

Sábado, 17 horas. Supermercado lotado. O alto-falante anuncia as promoções do dia, carrinhos de compra vão e vêm, num tráfego confuso e intenso. As filas quilométricas nos caixas parecem não ter fim. Crianças berram, mães reclamam, funcionários sofrem com o mau humor dos clientes. Em meio ao tumulto, ele empurra seu carrinho abarrotado de compras. Para, e examina o preço- na prateleira- “maldito código de barras!”, pensa. Põe junto às outras compras e segue adiante, sem pensar em nada, apenas olhando as prateleiras sem nenhum interesse. Vira à esquerda, na seção de frios e...crash!! Uma colisão com outro motorista igualmente desatento. Saldo da tragédia: 3 sacos de feijões rasgados, 1 frango congelado contorcendo-se de dor, e uma lata de ervilha rolando em meio à multidão, que a esta altura já os transformava em centro das atenções. Dois minutos de fama! O sangue sobe-lhe à cabeça. Como pode existir tanta gente distraída no mundo? Enquanto arruma os pacotes de volta no carrinho, esbraveja:

-Ah, Droga! Porque você não olha por onde anda? Por acaso é cego, é?

-O quê? –responde uma fina e estridente voz-quem é o cego aqui? Por acaso você é maluco cara?

Para imediatamente de recolher as embalagens. Essa voz lhe parece familiar. Arqueia a sobrancelha, e devagar olha para cima, com um saco de feijão nas mãos, rasgado no fundo.

-Lúcia?

Só agora ele repara nas pernas à sua frente: lindas, esculturais, magníficas. Sobe mais um pouco e topa com o umbigo. Que umbiguinho! Inesquecível! Um pouco mais acima, aprecia seios dantes navegados por ele, em noites de chuva e tempestade, sem falar na boca. Ah, Que lábios! dão vontade de ficar mordendo sem parar....

Dois segundos depois:

- Álvaro? – responde a garota.

- Lúcia? – disco arranhado.

- Álvaro? – repete, mais uma vez.

- É você mesmo menina? – sorriso estampado, no rosto iluminado.

- É...Sou eu. – fotocópia colorida do sorriso anterior.

- Há quanto tempo!

- É. Já faz um tempão.

- E aí? O que conta de novo?

- Nada. Ultimamente não tenho feito nada de especial. Só aquela velha e monótona vidinha de sempre, que você já conhece.

- Pois é... Mas eu soube que ‘cê tá cursando Letras.

- É verdade. Entrei ano passado. E você? Já prestou vestibular?

- Já. Também ano passado, pra Direito. Mas já viu, né? Concorrência braba!

- Pois é.

Por um instante ele se acha - não se pode dizer que sem razão - o maior idiota do mundo: agachado em um supermercado lotado, rodeado de pacotes de toda sorte de produtos, quase tendo um torcicolo para conversar com uma “ex” que não vê há mais de dois anos. Decide levantar. O feijão escorre pelo buraquinho, fazendo um barulho irritante. Envergonhado e nervoso, tira um maço de cigarros do bolso e puxa um, acende, e a fumaça espalha-se, mais parecendo a chaminé de um trem.

- Fumando? Desde quando?

- Ann...Já faz um tempo...

- Porquê? Buscando auto-afirmação pra masculinidade? Ou pra se sentir mais maduro?

- O quê? De onde você tirou essa idéia, Lú?

- Lú? Há quanto tempo ninguém me chama de Lú...tava com saudade- uma voz de mel soa nos lábios vermelhos de baton.

Encabulado, coça atrás da orelha, tosse, e a fumaça cobre seu rosto, o que o obriga a tossir mais algumas vezes. Os olhos piscam nervosamente.

- Algum problema? Ficou nervoso? Desculpe-me – primeiro cara de espanto, depois de dó.

- Problema? – continua piscando - não, nenhum...’magina....entrou um cisco no olho...

- Ah...bom....- carinha de “tô sabendo...”.

Pausa estratégica para providenciar novo assunto. Olham para os lados, ele assobia, ao mesmo tempo em que traga (não me perguntem como). Põe a mão no bolso da calça, e com um sorriso sem graça, manda:

- E aí? Namorando?

Ela baixa a cabeça e olha de rabo-de-olho, do tipo “não tinha nada melhor pra falar não?”.

- Hã...é...tô...- diz, de uma vez.

- É mesmo? Que legal! Eu conheço?

- Não! Quer dizer, acho que não...

- Qual o nome?

- Rafael.

- O que ele faz?

- Forma-se em junho. Medicina.

- Medicina. Bom curso. Em que área ele quer atuar?

- Ginecologia.

- Gine...Muito interessante...- um sorriso maroto, com um toque visível de malícia, desponta em seus lábios. Ela percebe.

- Bem...tenho que ir. Prazer em revê-lo.

Ele a segura pelo braço.

- O que é isso? Assim...Tão rápido?

- É...estou um pouco atrasada.

- Atrasada...sei......

Solta-a. Silêncio. Retomam a despedida.

- Tá bom...ann....- ela balbucia.

- Hein?

- Não...nada não.....besteira.

- Não...Vai...Fala...- pede com olhos de peixe morto.

- Nada...Só ia dizer que se um dia você estiver a fim de passar lá em casa, pra um papo, sabe? Pra colocar a fofoca em dia...- carinha de “ah, meu Deus! Essa foi horrível!”

- Na sua casa? – carinha de espanto - quer dizer, você ainda mora no mesmo lugar, né? – cara de idiota mesmo, com direito a sorriso amarelo da pior espécie.

- É. Algum problema?

- Problema? Nenhum. Pelos menos não que eu saiba - mais um sorriso amarelo-......Um sábado, talvez?

- É. Um sábado é legal...Sabe, tipo...A gente não trabalha no domingo, ,pode curtir até mais tarde....É...Sábado é legal.

- Ok. Então num sábado.

- “Num sábado?” Mas que sábado?

- Ah! Sei lá, qualquer sábado. É só ligar...

- Como ligar se não tenho o telefone?

- É mesmo...Anota aí, vai...

Enquanto ele anota o número, ela percorre com os olhos aquele cavanhaque ridículo, os braços finos, a calça surrada e a língua exposta, no canto da boca, e pensa “continua o mesmo... ainda bem”, e ri consigo mesma do pensamento torpe e inoportuno. Afinal de contas ela é uma mulher comprometida com um dos mais promissores alunos de uma das mais conceituadas faculdades particulares do estado, gata da faculdade, Rainha do Milho de 1989, e quem sabe um dia, futura MISS BRASIL, não pode ser vista com tipos estranhos que adoram passar horas a fio na frente de um livro de mais de trezentas páginas idolatrando velhos mortos que criaram as leis penais, tipos que ao invés de curtirem um “pagodão” ficam chorando como criança quando ouvem uma daquelas baboseiras clássicas de Môzarti, Xaíkóviski, coisa de otário...Eca! Deus me livre!

Ao mesmo tempo, lembra de quando estava na pior, passando por momentos difíceis, e este mesmo “otário” foi o único que a ajudou, falando dos romances da literatura universal que sempre acabavam em morte, em homens que vendiam suas almas ao Diabo para conseguir conquistar as mulheres que amavam, outros que suicidavam-se por um amor proibido, e outros que nunca conseguiam alcançar o romance que tanto almejavam. No fim das contas, ele até que era bem legal, estranhices à parte.

- Anotou?

- Já. Quer o meu?

- Quero.

“Tão linda, e às vezes tão fútil”. Este foi o pensamento que teve quando olhou aqueles lábios escarlates, que sua imaginação fértil fazia parecer que lhe pediam um beijo, longo e quente. Lembrando das tardes no gramado da faculdade, recitando poesias, lendo trechos do Werther, Fausto , e tantos outros amantes fictícios da literatura universal, tentando, de alguma forma, sensibilizá-la para sua existência. Querendo fazê-la perceber que ele era todos aqueles personagens, porém, que era real, que tinha sentimentos sinceros, e que nunca iria machucá-la como os outros faziam. A futilidade ficava por conta da importância exacerbada dada às aparências, às opiniões dos outros, que mal se importavam se ela estava bem ou não, e sim com que grife ela estava vestida na festa, com que carinha ela namorava – tinha grana? Filho de quem? Cursava o quê?- Isso determinava o Status de uma garota no mundo no qual ela escolheu viver, não importava se tinha caráter ou não, contanto que fizesse parte da “Elite”.

Ela fita-o, ajeita o cabelo, olha pro chão, como se não tivesse coragem de encará-lo:

- Bem, tenho que ir agora.

- Algum compromisso?

- É...Quer dizer, não...É...Tenho que encontrar o Rafa no clube. Vamos jantar juntos.

- Ah...Jantar no clube. Muito chique. – sorri de forma sarcástica, tentando parecer divertido. Não funciona.

- Álvaro, por favor, não comece!

- Começar o que?

- Nós sabemos muito bem o quê: Você vai começar seu discurso pelos pobres e contra a burguesia dominante, esmagadora da classe operária, do proletariado...

- Vejo que você não esqueceu algumas coisas, apesar de tanto tempo.

- Eu não esqueci muita coisa. Ainda lembro de você. Tenho saudade daquele tempo. – a irritação dá lugar a uma súbita aparência nostálgica. Ela fala devagar, como se fossem suas últimas palavras em vida.

- Que bom Lú...- a voz está fraca, ele pensa em fugir. Mas como fugir de quem se ama? – Também tenho saudade dos velhos tempos.

- É. Legal. Bem, agora não posso mais demorar. Tenho que ir, senão chego atrasada. O Rafa tá me esperando.

- Ah..o Rafa. Ok.

- Ok. Então, até outro dia.

- Sábado.

- É. Sábado. Me liga, tá?

- Tá.

Ela sai caminhando devagar, levando consigo todo amor e saudade que ele sempre quis e sente. Pessoas passam por ele, verificando preços, chamando crianças, ou apenas pensando. Nada disso o distrai. Ele apenas acompanha seu grande amor por entre os transeuntes, cada passo, tenta ouvir cada expiração, e sente seu coração bater mais forte. Está a segundos de tomar coragem, de dizer a ela que ela não vai a lugar algum, a não ser para sua casa, ficar com ele, amá-lo e viver toda felicidade que para eles o destino certamente reservou. O sonho termina, e a realidade bate na sua cara.

Desce lentamente pela rampa do supermercado até o estacionamento, carregando seu carrinho com frangos acidentados e feijões rebeldes; se o sábado para um homem solitário já é triste, fica pior ainda quando este homem é um pseudoliterato que tem como musa uma mulher que supostamente esconde-se atrás de uma futilidade gratuita. Os motores dos carros saindo do estacionamento criam um clima melancólico e enervante. Vai até o seu fusquinha 73, abre a porta e começa a pôr as compras no banco de trás, lentamente. Entra no carro, põe a chave na ignição e para. Está inquieto, nervoso, angustiado. Imagina porquê está tão nervoso. Afinal de contas, ela não é lá essa sumidade de mulher que ele imagina, ou que talvez ela mesma ache.

- Arre! Esquece! v’ambora! – diz, num ímpeto de coragem e auto-suficiência que chega a espantá-lo: nunca fora do tipo independente, perto dela. Liga o carro, e acelera devagar, engata a marcha ré e crash! , mais um acidente.

- Hoje é meu dia! - diz, com uma ironia amarga e irritadiça.

Sai do carro e repara o estrago. Nada demais: apenas uma lanterna do motorista imprudente e desatento que não atentou para sua ré. Pensa no que mais o dia pode ter-lhe reservado. Suspira e vai até o outro motorista.

- Olha, pelo que eu vi foi coisa simples e boba. Não vejo necessidade de chamar a perícia e...

De repente ele emudece. Não podia crer no que estava vendo: “De novo não, meu Deus!”.

- Lú?

- Álvaro?

- Não acredito que isto está acontecendo.

- Eu também não...- ele sorri, mas a névoa da tristeza ainda paira sobre seus olhos.

- E aí? O que quebrou? Foi feio?- ela fala rápida e nervosamente, enquanto sai esbaforida, reparando o prejuízo - Ai, Álvaro, a culpa foi minha, me desculpe! É que eu estava tão pensativa e...

A frase é interrompida com um súbito abraço, seguido de um beijo quente, sincero e desejado há anos, por ambos. Num ato instintivo, ela tenta desvencilhar-se dos lábios, tenta não sentir o prazer que sente naquela insanidade, nas mãos que acariciam seu rosto e cabelo com um carinho por ela nunca experimentados, enquanto luta para arrumar forças ao menos para empurrá-lo, mas não consegue. Rende-se ao desejo e à paixão reprimida por tanto tempo. Vagarosamente, seus braços enlaçam o pescoço do rapaz, que treme de felicidade, paixão e desejo. Trinta segundos que parecem uma eternidade. O beijo termina e os olhos se encontram por um segundo, e logo após desviam o olhar pensando em como explicar e justificar aquela deliciosa loucura.

- Ann...- ele balbucia, e tenta articular palavras com algum sentido. O coração bate descompassado, sente nas mãos um suor frio, e imagina que vai vomitar. Está nervoso. Procura o maço de cigarros nos bolsos. Ela segura sua mão.

- Não. – diz, segurando a mão trêmula, fria e macia, e ato contínuo, beija-o, suavemente.

Motoristas impacientes e avessos à romances, buzinam ferozmente, procurando chamar a atenção do casal, porém, naquele instante mágico, nada importa, nada merece atenção. Xingamentos de toda sorte, buzinas ferozes, crianças chorando, a suave música no sistema de som do supermercado embalada pelas ofertas do dia, completam o cenário de mais uma inusitada história de amor. No céu, a noite abraça a cidade, amantes e os sonhadores, iludindo-os, seduzindo-os em empreitadas que talvez não durem mais que horas, meses ou poucos anos, mas que com certeza serão lembradas por todos, como as horas, dias e anos mais felizes de suas vidas.

Gustavo Marinho
Enviado por Gustavo Marinho em 29/01/2006
Reeditado em 22/09/2011
Código do texto: T105396
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