A bestialidade da piedade.

Num domingo comum, daquele em que você está saturado de coisas por fazer, aconteceu comigo um caso estranho, que por isso não deixava de ser comum. Eu precisava concluir umas transcrições para o meu emprego e ainda debruçar-me sobre algumas páginas de ótimos textos para a prova da universidade do dia seguinte. Subitamente, a vontade me forçou ao encontro de um velho amigo, um ser estranho, calado, cuja companhia é das piores em tempos de angústia. Ainda assim, ele era um grande homem, mesmo com a mente e com o corpo franzino. Convidei-o para almoçar em um restaurante do bairro, próximo aos nossos lares.

Eu tinha fome. Havia almoço na minha casa, mas hoje eu queira algo diferente. Não sei se o que me faltava era o sabor de algum tempero distinto ou a companhia de alguém durante uma refeição. Dirigi-me com o colega até o estabelecimento, sentamos e observamos o cardápio. O ambiente era de um conforto simples e usual, mas ainda assim solícito. Havia um homem tocando violão e cantando músicas famosas da MPB. Ele era um daqueles músicos que escolhem clássicos e destroem através de seus ínfimos talentos musicais. Os dedos de violonista eram lerdos e imprecisos. A voz até agradava para um músico de bar. Apesar do pequeno talento, o homem me agradava. A música ali se configurava de uma maneira que divergia da maioria dos casos que eu a apreciava. Neste momento, as notas e acordes atendiam a obrigação de compor a cena parcialmente. Os garçons, o aroma agradável dos temperos, a imagem de pratos bonitos, a conversa com o companheiro, tudo isso se aglutinava juntamente com a canção para compor algo de valor apreciável. Em outros momentos, eu fechava os olhos e ficava inerte, observando como um bom som é capaz de, na solidão, constituir milhares de espetáculos divinos, estrelas que explodem e nascem em nossas cabeças.

Continuava apreciando aquela beleza usual que, por vezes, me fazia tanta falta. A alienação filosófica, musical e acadêmica me faz mal em algumas ocasiões. Há vezes que o que mais desejo é a simplicidade. Infelizmente, eu era incapaz de ficar alheio a tudo isso mesmo nesse instante. Uma vez ou outra sempre me invadia a mente textos e reflexões dos grandes. Coisas que não vale a pena eu dispor aqui, uma vez que isto não acrescentará nada ao caso. Foi em um destes momentos que uma mendiga pediu-me algo pelo lado de fora do restaurante. Aborreci-me, nem em um almoço de domingo poderia eu ficar sossegado? Neguei qualquer tipo de ajuda à mulher. Na verdade, o dinheiro que eu tinha era o suficiente apenas para o meu prato, não havia mesmo como ajudá-la desta vez. Que baboseira! E ainda há idiotas que utilizam isto como desculpa! Claro, eu não teria o que comer durante dias se eu desistisse ali mesmo de uma refeição mais saborosa! Desculpe mulher, mas a libido da minha língua importa bem mais que a necessidade do seu corpo. Cruel, eu? Pena que você deve sentir o mesmo que eu nesses momentos, não lembras?

A moça foi embora, com um ar triste de quem deveria ter de mendigar e avistar cabeças negando comida com um ar pérfido de pena. Pena, porque é que eu tão pouco sentia isto? Eu sabia que a vida daquele ser deveria ser terrível, mas, ainda assim, a piedade que me tomava ao observá-la era ínfima. Parecia que aquela realidade estava tão longe de mim que eu não a tratava como igual. Foi neste instante que um barulho impetuoso invadiu o ambiente. Meu coração bateu forte e os meus pés congelaram quando virei lentamente a cabeça para ver o que tinha acontecido. Aqui, eu vi uma moto desgovernada e uma criança sendo arremessada pela velocidade do objeto. Um homem a acompanhava, parecia que ele queria agarrar o menino e protegê-lo, mesmo embolando pelo chão. O pequeno foi jogado sobre a calçada, onde esbarrou numa árvore, voltou para pista, ficou tonto por instantes e caiu. Ali estava uma cena incomum para os meus olhos e tão freqüente para os céus.

A criança era capaz de se mexer e não estava sangrando. Aquilo me aliviou por ínfimos segundos. Não fosse a cautela do meu olhar em analisar o acidente, eu não teria visto que o pequenino havia batido a cabeças com força na árvore. Memória desgraçada! Por que não me deixasses iludir com as conversas esperançosas dos clientes? Vários indivíduos ligaram apressadamente para o SAMU, ainda calmos. Mas, eu não me iludia, sabia que em breve as coisas iriam piorar.

Havia algo tão interessante nesta cena. Na verdade, não parava de pensar sobre o ser humano durante todo o tempo que as vítimas ficaram no chão. Era incrível como tantos seres desperdiçaram seus pratos e seu agradável meio-dia para socorrer o garoto. Uns puseram guarda-sóis para que a luz quente do céu não atormentasse os acidentados. Outros foram conversar com o menino para que ele não se mexesse e também iludi-lo, alegando que tudo estava bem. Vários não paravam de ligar com aflição para o serviço médico. Mas a maioria, quase todos, sentia uma absurda necessidade de que tudo aquilo acabasse logo para que voltassem as suas vidas normais.

Sentia um conflito estranho a minha pessoa. Era o cotidiano quebrado e a necessidade de afirmar meus valores cristãos. A maior parte das pessoas dali sentia pena dos acidentados, é verdade. Contudo, queriam que aquilo tudo acabasse mais por desejo de tomarem suas vidas de volta do que por caridade às vítimas. Eu sentia a fome bater e a tentativa de dominar o nojo da comida que tive após o acidente. Vi a face do menino que, como eu temia, apresentava elevado inchaço e sangrava. Lembrei que os dois estavam sem capacete e ... “sorri, quando a dor (...)”.... Ouvi o músico tentando voltar a tocar aos poucos e os garçons entregando pratos para os clientes. Exasperei-me neste instante até que... Ah, eu gostava disto! Aquela cena estava dolorosa por demais. Sabia que o certo era chorar e pedir a Deus pelo moleque e pelo irresponsável que dirigia a moto sem capacete. Achei um absurdo aquela canção numa hora destas. Achei mais absurdo ainda eu admirá-la neste momento.

Vi os clientes comendo batatas-fritas e assistindo a briga entre os familiares das vítimas. Vi também senhores tomando coca-cola e assistindo a avó do garoto que perdera forças ao vê-lo no chão. Ah, que necessidade de me esvair daí e almoçar em outro local. Que ímpeto era esse que me dizia que nada tinha a ver com isto e que eu devia continuar a vida sem me importar com o acontecido? Oh, consciência, por que me obrigavas a continuar no local, mesmo sem querer? Apenas para que eu não me visse como um monstro que sou? Na verdade, não tinha medo de mim mesmo, ao contrário da maioria dos que ali estavam. Eu via a besta dentro de mim e a encarava face a face, a reconhecia e não temia. Eu sabia que o que me fazia ficar ali era um aprendizado e a oportunidade de escrever algo. Toda a desgraça, todo o desespero, me inspirava sobremaneira. A luta entre o dia-a-dia e o fato incomum, a maneira que eles se entrelaçavam e a consciência de como os seres humanos são dementes fazia-me um gigante naquele momento.

Sentia pena, isto era um fato. Em um vão momento, desviei a vista do acidente e olhei para a outra calçada. Notei a mendiga que me pedira coisas outrora analisando a tragédia. Meu coração pulsou e compreendi nesciamente a besta que habita em mim. Por que todos estavam tão preocupados com os acidentados e negligenciavam a tragédia constante da mulher? Os três corriam sérios riscos de vida e, mesmo assim, apenas dois tinham o direito da caridade. Pensei que a atenção diante dos que caíram da moto se dava devido à quebra de cotidiano. Percebi que eu estava errado. Havia algo intrínseco naquilo tudo. Eu e a maioria dali sabíamos que provavelmente nunca necessitaríamos do que precisava a indigente. Apenas com o maior dos infortúnios viríamos a nos transformar em mendigos e necessitar o apreço tão baixo de qualquer tipo ou resto de alimento. Já com os outros dois não. Aquilo poderia acontecer qualquer dia comigo, com eles, com os filhos deles. Percebi o quanto a pena é traiçoeira e nos ilude, fazendo-nos crer que nos importamos com os outros. Eu não tinha pena do moleque e do responsável por ele. Eu tinha era pena que aquilo acontecesse comigo mesmo, apresentava angústia e medo desesperados. Aquela cena era próxima demais à minha vida. Nesse dia, entendi que não posso mensurar o monstro que habita em mim e que a piedade não é um sentimento isento de egoísmo.

Dionísio niilista
Enviado por Dionísio niilista em 25/06/2008
Reeditado em 26/06/2008
Código do texto: T1051603