OD DIAS DE FEIRA

De presente, ela, ganhara ao nascimento o próprio nome: Rosa Branca. e era de uma pele clara que só louça.Morava com o pai:médico,velho e cansado;a mãe tão dona-de-casa que não saia quase nunca da janela do espaçoso apartamento na Tijuca.Também a vista era linda:era assim um frescor de verdadeira manhã de domingo.

A empregada assoviava com o aspirador ou ajeitando as “coisas’ na cozinha”. A empregada sentia-se invadida também...

A casa vivia à espera do toque vibratório da esperança. Não havia motivo para se dizer não porque nem mesmo ocorria do que dizer sim.

Rosa Branca deixava os cabelos escuros soltos e o sorriso oferecia para o dia que sempre cheirava a uma verdadeira manhã de domingo.

As buzinas dos carros lá embaixo eram certo frenesi de que o dia-a-dia queria chegar além. E os olhos verdes de Rosa Branca cintilavam como faróis para o sol que parecia sempre um sol de algum cartão-postal.

Rosa Branca era uma moça à frente do seu tempo, já que era dessas meninas que se preocupava com o destino. Confiava no pai.E amava o jovem discípulo do pai numa promessa que o sorriso dele das visitas mais comuns já dizia.

E quando ele não vinha sempre com seu ar de moço educado e metaleiro, ela olhava para a poltrona onde ele sempre se sentava a tomar conhaque em companhia do seu velho pai, mas prestando atenção nela.

E assim ela aguardava... talvez mais um crepúsculo violeta em que ele viria..

O príncipe encantado!Pensou ruborizada e cheia de pejo olhando para o reflexo do sol na parede branca.

A empregada aguardava a sexta-feira numa casa que vivia o eterno clima de uma manhã verdadeira de domingo.

O príncipe encantado! Insistia ela sonhando ao roubar um pouco a janela da mãe, sempre ruborizada consigo mesma, alerta a qualquer ronco de moto que podia ser dele.

E é que se podia ver um cavalo branco...

Com cuidado e benevolência as coisas se acomodavam no lugar da poeira que não tinha, pois a empregada era eficiente e bem paga.

Parte do mundo, parecer para eles, sempre como uma verdadeira manhã de domingo era devido à empregada.

Não se via mais o sol, porém o espetáculo violeta começava, e um alvoroço de pássaros de repente fora tão perceptível. Não pensou em nada,R osa Branca, por um bom tempo duradouro até que lhe assaltou a idéia de ter que ir para o quarto:hora de se preparar para o vestibular.

Tranqüilidade... nem um ovo quebrado na cozinha era capaz de interromper.

A mãe procurava o seu livro de receitas já sabendo onde ele estava; a empregada a acudiu. Ela sempre carecia,então era grata.E a gratidão reverberava sobre todo prédio.O porteiro era desses que finge que ouve o que se passa no radinho de pilha.Nem tudo pode ser perfeito.

Faziam um bolo de nozes para depois do jantar. A cozinha se encheu de uma conversa difícil e diferente mas que completava tudo com mais graça,alegria e agradecimento.

Rosa Branca em seu quarto de cores amarelo-bebê, debruçada sobre a cama, afetava interesse pelo livro de física. Os cotovelos doíam fincados no colchão fofo.Então Rosa Branca abandonou-se,e relaxando na cama macia tirou o livro de debaixo do travesseiro:um romance educado de Bárbara Cartland.Ela já sabia o que aconteceria no final,eram todos iguais,por isso arriscava-se a ler.

E tudo correu tão silencioso e sem espera assim até uma manhã que foi como a única ou como o começo. O começo do que a bem dizer?

É que houve uma pergunta no interior do que viviam. uma pergunta que latente fora por negligência dos que viviam à margem do que possivelmente seria impossível.

Rosa Branca ficou tão espantada com o céu cinza e um chuvisco continuo que beliscava só em respirar, que resolveu descer até a portaria como se para comprovar se as coisas continuavam funcionando ao mesmo modo habitual e indolor de sempre.

Será que o porteiro agora dava mesmo tanta atenção ao radinho de pilha?Senão como o tinha colado tão próximo ao ouvido?

A verdade é que verdade mesmo era a chuva caindo fina, mas contínua, quase como flocos de gelo. Das grades do portão da portaria,sob o dossel de telhas colonial,Rosa Branca podia sentir...podia sentir porque estava muito próximo.

Não o asfalto que se transformara não as plantas do jardim tão perto que estavam de folhas argentinas e rígidas, não nem mesmo o próprio céu tão triste derramando pranto sobre as lajes, e nem tampouco os carros que corriam apressados espargindo água lavada para todos os lados. Era... era a verdade abstratamente apalpável.

O caminhão do lixo descansava na chuva. Por quê?O que se aguardava?Na chuva, tinha que ser na chuva?Havia alguém na boléia do caminhão descansando no volante. era algo bem mais forte do que simplesmente descansar no volante.era algo simples e tosco mas era repugnante de se saber.

Dois rapazes vestido de cor-de-abobóra corriam de um lado para o outro da calçada catando os sacos de lixo na caçamba. Era só isto?sim era só isto ou isto era quase isto. Foi que doeu.

Ele se estagnou perto dela à grade do opulento edifício, como se o peso dos sacos de lixo não existissem às suas mãos. Rosa Branca o admirava com certo espanto.No rosto moreno e cansado dele havia uma certa paz,e nos olhos que piscavam humildes era como se a chuva que molhasse seu rosto fosse as lágrimas que não importava.

Rosa Branca o olhou de todo, e o viu mais criança dentro daquela roupa muita larga ao seu corpo.

-Você não está com frio? Arriscou ela num tom ainda mais humilde que achava ele, num fio de voz.

Ele piscou os olhos como um menino perdido que esquecera onde era a sua casa. Rosa Branca o via exatamente assim e não sabia de onde tirava forças para naquele momento deixar escapar o sentimento:paixão.

Ele sacudira os ombros num alegre jeito de não se importar. Ele não se importava consigo mesmo,e ela se importava muito.Sofria no lugar dele.Não queria,porém não teve escolha;ganhara aquilo como quem ganha o dom de nascer.Era uma dádiva como a vida,que a arrepiava na espinha.E se o acolhesse assim deste modo?Passava-se um átimo de momento como o tempo lento da poeira vagar até chegar ao chão; ele não a olhava mais nos olhos, como se tivesse medo da piedade dela. Talvez porque não precisasse.Porém Rosa Branca é que precisava que ele aceitasse a piedade dela.

O que seria sua vida sem ter esta mísera misericórdia?

Ele correu com seu fardo nas mãos, alegre como um passarinho que era livre, até o caminhão onde jogou o fardo dentro da caçamba; e de repente o barulho daquilo triturando fora como um violoncelo na sua delineadora melancolia.

Ele se ia para sempre?Fora a pergunta interior. Fora apenas como um passarinho que pousara a sua janela?

Rosa Branca perdeu o olhar, porque não achava nada, assim deste modo não achava nada, e ela rodava num mundo à-toa. E de repente,sem saber por quê e não tendo como evitar,sentiu-se a pessoa mais infeliz do mundo.Sentia até que sua existência era um sinal de interrogação voando numa tela vazia de computador.

Mas ele a olhou,a olhou buscando se ela olhava,hesitando em se pendurar à balaustrada do caminhão. E Rosa Branca,numa força dentro de si extraordinária,o pedia com o olhar fixo à sua imagem única.Pedia que ele aceitasse a misericórdia dela,a paixão;que era o pouco que tinha.ela era pobre de qualquer coisa mais,muito pobre de qualquer coisa mais.E já compreendia tão intensamente roxo dentro dela que ele era precioso.Ele tinha riquezas maravilhosas no simples suspirar e arquear de ombros de baixo de uma chuva fina e gelada,e no lixo que era o seu pouco caso com o pouco caso.

Ele era absolutamente verdadeiro e feliz, e tanto isto que nem precisou ela conhecer mais dele. Já o sabia.E ele era o elo que poderia liga-la à uma felicidade etérea,a uma felicidade calma e serena.

Ele arrancou uma flor desengonçada de uma árvore qualquer ali da calçada, e veio chegando perto dela, com uma cautela espavorida e prudente, pareceu quase nunca chegar.

Rosa Branca adivinhava enquanto ele vinha em sua direção como um menino que se perdera da sua casa e a rua era agora sua casa mesmo.

Ele chegou tão perto, muito perto. Somente as grades do jardim o separavam.Rosa Branca viu,assustada com a felicidade,que ele tinha olhos baixos apesar de todo sorriso no rosto;e a chuva molhava seu rosto moreno,suas mãos que tremiam ,segurando a desengonçada flor,pingavam.O boné com a aba para trás escondia os cabelos,talvez encarapitado no casco.

Ele aceitara a piedade dela, e isto era bom e fazia Rosa Branca tremer. Ele a oferecia a flor mais simples que seus olhos um dia pode ver de perto.Quando ela levou a mão até a dele para pegar a flor,sentiu a mão dele:molhada;e através do molhado:o áspero.Rosa Branca pegou a flor,sem saber o que mais,levou-a junto ao seio.Ele arriscou um olhar.A piedade que ele via nos olhos dela por ele o assustava.Mas ela precisava que ele aceitasse assim como ela aceitou a flor amorfa.Era uma troca amável de simplicidade,gentileza e candura.

E foi só isto? E foi só isto? Era o canto da chuva que continuava caindo amiúde e intensa.

O porteiro voltara a fingir que prestava atenção no radinho de pilha. E Rosa Branca olvidando do elevador tomou os lances da escada em sofreguidão,levando a flor desengonçada quase junto ao seio.

E dentro do apartamento sentiu a presença da penumbra confortável com a casa já cheirando ao almoço. Foi pra o seu quarto.E sentia-se irreal dentro de uma realidade.

A empregada, a pedido da mãe, viera saber o que ela tinha. Respondeu que nada,da cama com a flor na mão,mas pediu que por obséquio lhe trouxesse um copo com água.A empregada fora atender o pedido fingindo não perceber nada de diferente na patroazinha.

Rosa Branca colocou a flor dentro do copo com água na cabeceira da cama próximo a um porta-retrato com o seu retrato sorrindo dentro de um jardim. A empregada embora teve ,inultilmente,esperando o copo vazio de volta,deixou

O aposento da moça num sorriso sem nenhuma curiosidade.

E Rosa Branca acariciando os dedos dos pés, e admirando a flor pensou o que aconteceria amanhã. Já que,apesar de as coisas terem parado de funcionar por um instante,tudo voltara tão acudido e imediato à sua “normalidade”;até iniciando-se com o porteiro na sua falsa atenção ao radinho de pilha.

Um mundo bem mais forte a pegara de supetão e de boca aberta, sem ação...

Partira-se o céu violeta como um espelho que não agüentou a fealdade da falsa donzela. Nada era bem isto que ela se acostumara como ostra.E como viver amanhã?Já sabia que ia ser difícil, tentaria uma forma de ignorar em parte, sendo que nada desse jeito lá dentro que já estava bastante remexido.

Podia tentar chorar se aliviaria a angústia, mas o que explodia entre os seios ofegantes era um gozo de rir de da mais pura e genuína felicidade.

O sentimento não tinha nome no pensamento e ela sentia no organismo buliçado. Tocou ao seio delicadamente provando...provando como estava febril.E a flor despencava, sem jeito,sua corola por fora do copo.Se fosse corola mesmo aquela coisa com graça e sem jeito.

Ah, amanheceu, como amanhece as manhãs de todo dia: as coisas voltando competentes e indolores ao seu lugar. E houve outro dia assim,que nunca seria como aquele.E no meio à tudo isto,depois do reforçado café da manhã e do beijo do pai que saia para o trabalho,ela teria olhar rápido para a janela e pensar no vestibular que estava próximo.E só depois,mais tarde,o quebrar do silêncio de quem morde uma maçã quem sabe...

Mas...

O príncipe encantado! Foi ela exclamando por dentro, em pejo e inquieta ao ouvir o ronco da moto lá na entrada do edifício, quando quase se arriscou a olhar para a janela.

Ele entrava pela porta principal e quase se dispensava que a empregada lhe abrisse a porta.

O príncipe encantado! Era a forma como procurava adornar de novo o que de pouco já perdera.

Ele sorria no rosto tomado pela barba dura e castanha, e trazia um buquê de rosas cor de vinho às mãos e encostando ao terno preto e elegante.

Ele todo era a elegância e beleza: erudita e jovem... até no perfume que se confundia com o perfume das rosas.E ela tão olvidada no conjuntinho branco,mas tinha o perfume como o próprio nome...e estava bom assim,e era o que mais queria na vida.

Pegou o buquê e ficou olhando as rosas esperando que ele se aproximasse. Ele se aproximou,e antes de beija-la delicadamente,olhou para a poltrona onde sempre se sentava com uma esdrúxula espécie de saudade.

Rosa Branca arrepiou-se ao beijo dele, e encolheu-se, pensando a distrair todo excesso de felicidade com aquele cheiro de bolo que vinha da cozinha e tomava toda casa tal como o sol morno daquela tarde de outono.

Só que o sol desapareceu entre uma fumaça de nuvem, e mergulhada a casa numa aconchegante penumbra, a empregada se viu acudida na janela com o ruído do caminhão da coleta do lixo lá embaixo na calçada que trouxe ao vento certo cheiro desagradável.

A mãe veio acudida à sala; chamando a empregada-amiga, e cumprimentando o futuro genro desacoroçoada com um sorriso fraco.

-Maria José minha filha vá lá à portaria ver o que é isso... este caminhão de lixo parado aqui em frente...que horror!

Rosa Branca pensava no buquê as suas mãos, e no príncipe encantado que sorria fiel.

A empregada deteve-se, ao pedido da patroa, no que o interfone fixado junto à porta de serviço tocou. era o porteiro avisando que o lixeiro estava no portão pedindo para falar com Rosa Branca.

-Tem cabimento –interrompeu a mãe defendendo a filha.

Rosa Branca desceu o lance de escadas com o buquê que ganhara de seu príncipe.E chegando à portaria , lá estava ele:com o uniforme cor-de- abóbora encardido,o rosto moreno e humilde.

Dentro do apartamento aguardavam sem nenhuma aflição.

Rosa Branca chegara bem próximo,ele fugia o olhar,embora a posição estivesse firme;os dedos se entrelaçando em cada mão.

O buquê de rosas cor de vinho que ela trazia tão protegido contra si era facilmente notável.

-Pode falar...foi ela se sentindo viva,feliz e ainda mais.

Ele arriscava e defendia o olhar porém falou esfregando muito as mãos,nervoso:

-É...pensei...tentou então de oura forma – é que hoje aceito aquela caneca de café, que vo... ª...se...que me ofereceu ontem...

-Ah sim,falou ela num tom adulto dentro de um suspiro,todavia emocionado

Quando voltou ao apartamento,Rosa Branca entregou o buquê nas mãos da empregada,pedindo que pusesse num jarro e ali na mesa de vidro da sala a alcance da vista dela e do...príncipe encantado!era o que exclamara dentro escapando.E assim que se sentou no braço da poltrona,onde estava ele elegante e sorridente a tomar um conhaque,ela se lembrou surpreendida,fazendo a empregada voltar já que havia virado as costas.

-Ah Maria,já ia me esquecendo;vocÊ me faz outro favor,assim que terminar o que pedi antes?É que em um rapaz lá em baixo,na portaria,você leva uma xícara ou caneca é melhor de café para ele,tadinho...tadinho...

Então a empregada acudiu nos obséquios.E da cozinha,Rosa Branca,encostando a cabeça ao ombro do namorado,ouviu a voz da mãe vindo de lá da cozinha um pouco aborrecida:

-Mas esse cheiro...este caminhão de lixo ainda não saiu daí de frente.

E logo o pai chegaria:médico,velho e cansado;e antes o crepúsculo violeta pelo quadradão da janela.

Depois de manhã:domingo,afinal.

&&& 13 de agosto de 2004