Propaganda de cigarro.

Para Marika que me deu a idéia para esse conto.

Edgar tem um metro e setenta e oito, aliás, tudo nele terminava em oito, tem trinta e oito anos, calça trinta e oito, pesa setenta e oito quilos, tem dezoito centímetros de pênis, nasceu no dia oito do mês oito de mil novecentos e setenta e oito. Edgar olhou no relógio eram exatamente oito horas, oito minutos e oito segundos, tudo exato, tudo cronometrado, aquilo só poderia ser um sinal, mas um sinal de que? Edgar é um desses caras que acreditam em sinais. Ele esperava um sinal, talvez de Deus, para dar uma guinada na vida, que aliás não ia muito bem das pernas. Na cidade, quando andava pelas ruas, era olhado, apontado com dedos cínicos, risinhos discretos, tinham-no como um lunático, mas Edgar não era louco, estava apenas esperando um sinal, só não sabia bem para que. Mas tinha certeza que no momento o certo o tal sinal viria, fosse como fosse, fosse pra que fosse.

Edgar olhou para frente antes de atravessar a rua, o sinal estava fechado para os carros, mas mesmo assim ele estava receoso, achava cada vez mais difícil atravessar uma rua, a frota de veículos estava crescendo numa progressão geométrica, enquanto a educação dos motoristas parecia diminuir em uma progressão aritmética cada vez mais ascendente. E pelo fato de estar distraído com os olhos postos na coincidência octaul do mostrador do relógio, era uma vitima fácil para um atropelamento, e então ele iria fazer parte de uma estatística, também cada vez mais cruel, a dos atropelamentos e mortos no transito, todos esses pensamentos passavam pela cabeça de Edgar enquanto atravessava pisando na faixa de pedestres.

Na calçada entrou na banca de revistas, o homem por detrás do balcão usava óculos antigos, camisa antiga, calça antiga de boca de sino, até mesmo a fisionomia do homem parecia ser jurássica, a banca era uma espécie de sebo, revistas e livros tão antigos quanto o próprio vendedor. Edgar sempre entrava ali, gostava de olhar fotos velhas nas revistas encardidas, nostálgicas imagens de um passado já embaçado, o vendedor, Edgar sabia, se chamava Joaquim Silvério, tinha olhos, por detrás das antigas lentes, de mangá, redondos e negros, parecia ver tudo ao redor, Edgar tinha a impressão, às vezes, de que o homem enxergava em preto e branco como nas revistas antigas que vendia. Edgar passeia os olhos pelas encadernações, jornais antigos, notícias que ninguém mais quer saber, revistas com matérias tão antigas quanto o próprio habito de inutilmente folhear revistas inúteis, ele observa, passa os dedos sobre a camada de poeira que cobre algumas das encadernações, tosse, pigarreia alto, o homem o observa em silêncio, nada diz, não pisca os olhos, parece um peixe, Edgar pisa com os pés pesados no assoalho envelhecido, tem a impressão de ouvir os cupins passeando por dentro da madeira, não entende como os cupins ainda não devoraram todos aqueles livros, aquelas fotos todas, imagens desbotadas, fotografias em sépia de dias e momentos que já foram esquecidos, que já não mais interessam a ninguém, a não ser a ele, Edgar, que desesperadamente procura por algum sinal.

A barriga ronca, instintivamente Edgar sabe que é preciso comer alguma coisa, saiu de casa sem o café da manhã, entra na primeira padaria que encontra aberta, uma vitamina e um salgado gorduroso, adora devorar qualquer coisa pingando gordura saturada, a medida que devora o salgado a gordura escorre pelos dedos que ela caprichosamente faz questão de lamber, morde a massa e o queijo se estica, progride para fora do espaço físico do salgado, Edgar se deleita, se enrosca, devora languidamente enquanto sorve a vitamina, seus olhos passeiam pelo cenário, pelas pessoas, homens mulheres, crianças, parece haver indícios de pressa na maioria dos semblantes, observa Edgar, gosta de observar, gosta de descrever mentalmente as pessoas, suas figuras, seus cacoetes, singularidades, hábitos, vícios, observa demoradamente as pessoas, gosta de fazer isso quando está de óculos escuros, ninguém pode flagrar seu olhar nessas situações, uma voyer do cotidiano, é isso que pensa, as vezes, de si mesmo, mas há uma explicação, é para os livros, procura arquétipos, esteriótipos para construir seus personagens, Edgar escreve livros enquanto espera por um sinal. Mastiga devagar, sente o sabor da fritura, tem especial paixão pelas frituras, se orgulha de devora-las e não ter engordado nada nos últimos anos, o corpo sempre esbelto, deduz que seja por causa do exercício, a caminhada diária, a caminhada noturna, a caminhada pelo labirinto da cidade, os becos, as ruas, os cantos, os mais variados templos do povoamento urbano, as coaclas, a periferia, os cantos mais ignóbeis da metrópole sedenta, divaga, enquanto mastiga, enquanto entope-se se gordura saturada.

As pessoas parecem ser todas iguais, diz pra si mesmo, mas no fundo sabe que não são, as nuances humanas variam, caráteres, ideais, os caminhos dividem-se em muitas direções, ele se convence, vendo as pessoas, nem todos os caminhos levam a Roma, tudo flui, havia dito Heráclito, é como um rio, Edgar observa esse rio, seu turbilhão, suas águas que sambam em direção ao grande oceano, a esse oceano Edgar batizou de caos, em certos momentos ele teme esse rio, teme a fúria de suas águas, o escuro abaixo da linha d`água, então Edgar coloca seus óculos Ray-ban e deixa de olhar diretamente para os olhos das pessoas, foge da luz, foge da claridade do sol, foge de si mesmo, e então se esconde no labirinto escuro de sua própria incompreensão e se sente, ali, seguro, calmamente espera pelo sinal que nunca chega.

Edgar mastiga já o segundo salgado, devora a gordura enquanto pensa no livro que está escrevendo, o personagem central é um escritor, em todos os seus livros os personagens centrais são escritores, são misantropos, estão desesperados por alguma busca metafísica e sem sentido algum para os demais humanos que o cercam, todos são homens fornicadores que vêem nas mulheres meros objetos e meios para saciarem sua sanha devoradora e sua libido incontestavelmente irreprimível, suas personagens femininas são frígidas, reprimidas, tolas, fúteis, objetos supérfluos de decoração de interiores, Edgar já ouviu criticas a respeito, até a mãe o critica, sua ex-mulher pediu o divórcio por ter se reconhecido em determinado romance, embora totalmente, segundo a mesma, descaracterizada pela literatura machista, puzilame e chauvinista do marido. Isso parece não incomodar Edgar e nem lhe tirar o apetite enquanto já devora o terceiro pastel, e espera por algum sinal.

Pensa nos olhos de mangá do homem do sebo, vê muitos olhos parecidos dentro da padaria, sorve com força o resto da vitamina, mastiga o último naco do pastel, lambe os dedos, estala a língua num sinal de aprovação da iguaria, olha mais uma vez ao redor, seus olhos então se deparam com o anúncio de cigarro, a carteira aberta, os cigarros se projetando para fora da embalagem tão alvos quantos os dentes dos atores dos comercias de creme dental, a estética do cartaz chama a atenção de Edgar, um cigarro novo, lançamento, aproveite, experimente, diz o cartaz, Edgar não consegue deixar de olhar para aquela maravilha da industria publicitária, a propaganda o encanta, o anestesia, faz dez anos que deixou de fumar, caminha até o vendedor.

- Quero um maço desse cigarro.

- Não sabia que o senhor fumava.

- Parei faz dez anos, mas vou voltar, essa propaganda de me convenceu.

Edgar respira fundo, talvez a propaganda de cigarro fosse o sinal que tanto esperava, um sinal para voltar a fumar. Talvez não, mas tudo é possível, Edgar está absorto em soltar a fumaça para cima, dez anos que já havia esquecido do prazer inebriante desse gesto simples, casual, singelo, diz para si mesmo, a beleza da fumaça se dissolvendo na atmosfera da vida, pensa coisas, filosofa a respeito da brevidade da vida, tão efêmera como a fumaça, tão passageira, breve quando o cigarro queimando entre os dois dedos, fuma um, dois, três, sente-se refeito, sente o pulmão pulsar de uma alegria pueril a muito já esquecida, senta-se relaxado, liga a televisão, um filme idiota, pensa, sobre uma guerra idiota e inútil, desliga, não gosta do canal 13, aliás não gosta de televisão, mas gosta menos ainda do canal 13, treze dá azar, diz para si mesmo, depois ri da própria ingenuidade, fuma devagar, respira devagar, vive devagar, mas estranhamente ainda espera um sinal, olha pela janela e o céu está cinza, cor de chumbo, parece uma ilustração de um livro de Willian Blacke, Edgar gosta desse poeta, leu muito na adolescência, agora quase não lê, agora escreve os próprios livros, olha o céu, veste uma jaqueta de couro, dessas de motoqueiro e sai para a rua.

A rua está deserta, uma ou outra pessoa passando apressada voltando para casa, o caminhão da limpeza pública passa devagar, os homens saltam, correm, vão levando os sacos de lixo e jogando no interior da prensa, Edgar observa, quanto lixo, pra onde vai, de onde vem, fuma, caminha devagar, a fumaça sobe pra além da sua cabeça desafia a gravidade, se desfaz, flui e desaparece, parece que vai chover, ele gosta da chuva, da anestesia que cada gota causa ao corpo, as pequenas explosões contra o asfalto ainda quente, o minúsculo cogumelo da explosão, lembra uma bomba atômica, ele desce a rua, cachorros, gatos, animais totalmente domesticados, e, hostilizados pela flora da metrópole, assim como os homens, que procuram paz em seu próprio habitat, observa os garis que já viram a esquina, seus uniformes, a uniformidade de tudo ao redor, desde a linha sóbria das construções, a arquitetura faraônica, a pluralidade apática de movimentos individuais que se anulam no cotidiano robótico construído pelos homens, a rua se afunila, as árvores fazem sombra nas calçadas, Edgar sente os primeiros pingos da chuva, nostalgia, uma estranha vontade de voltar a lugares que ainda não foi, redescobrir paisagens que nem mesmo chegou a conhecer, saudade de momentos que não viveu, mas sabe que deveria ter vivido, é como se a vida houvesse passado em branco, sente que está envelhecendo e nada fez, que justificasse a existência estéril de trinta e oito anos, talvez por isso seus personagens sejam tão misantropos, pensa, a arte imita a vida, a literatura é um espelho da realidade, equaciona, caminha devagar, entra no primeiro bar aberto que encontra.

Poucas pessoas, em sua maioria homens, barbas por fazer, bebem, o cheiro de álcool conspurca o lugar, duas mulheres encostadas em uma das paredes, mini saias, pernas longas e depiladas, semblantes tristes, parecem olhar para além da linha do horizonte, ele se apóia no balcão, pede uma vodca, uma das mulheres se aproxima, pede que ele lhe pague uma bebida, ele paga, ela chama a amiga, diz se chamar Solange a amiga se chama Silvia, são prostitutas, conversa lentamente, queria ser modelo, a amiga, Silvia quando era criança gostava de bichos, gatos, cachorros, borboletas, certa vez tentou domesticar uma lagartixa, sonhava ser veterinária, ela toma devagar, Edgar lhe oferece cigarro.

- Nunca vi desse cigarro. – Ela diz.

- Pois é, é novo.

A mulher sorri, tem um sorriso bonito, por momentos a tristeza some de seu semblante, Silvia também aceita um cigarro, também sorri, e seu sorriso também é uma pintura boa para decorar interiores, bonito, leve, doce, singelo, seus olhos são azul cobalto, elas conversam entre si, Edgar se perde entre suas palavras e sua mente vaza para fora do bar. Solange o chama, diz alguma coisa, mas ele já não ouve, sai do bar, caminha para a chuva, que já está bem mais forte. Solange grita da porta do bar, ela também caminha na chuva, deixa Silvia para trás, eles andam na chuva em silêncio por alguns minutos, Edgar sente as gotas massageando seu corpo, caminha sem rumo.

- Onde está indo? – Pergunta Solange.

- Não sei, gosto de andar sem rumo.

- Posso ir com você?

- Se quiser.

- Como se chama?

- Edgar.

- O que faz?

- Sou escritor.

- Não é Edgar Alan Poe, não é mesmo? – Ela ri da própria piada.

- Não, acho que não sou.

A chuva aumenta, a água escorre das calçadas, Solange caminha devagar, desafia a enxurrada de cima de seu salto alto, Edgar observa a prostituta, a blusa molhada deixa em evidencia os seios, os bicos intumescidos parecem querer rasgar o tecido, ele sorri, ela se parece com uma das personagens de seus livros, alta, oxigenada, perdida no labirinto da cidade, param sob um toldo, ela prende os cabelos no alto da cabeça, a maquilagem derrete e Edgar pode vê-la como realmente é, linda apesar de triste.

- Por que é tão triste? – Ele pergunta.

- Pelo mesmo motivo que você.

Ela diz simplesmente e então ambos se calam e ficam a observar a chuva.

- Ainda tem cigarro?

Edgar coloca o papel na velha Olivetti, o dia está quente, o sol entra pela janela, Solange anda nua pela sala, tem uma caneca fumegante de café nas mãos.

- Por que você não veste uma roupa, assim me incomoda.

- O que está fazendo?

- Tentando escrever.

Ela se senta no sofá, pernas cruzadas como se estivesse fazendo ioga, os olhos dela se estendem para além da janela aberta, toma café devagar. Olha para Edgar enquanto ele bate no teclado da máquina.

- Eu li um livro seu uma vez.

­- Qual?

- O Homem que bebeu a lua.

- E o que achou?

- Não entendi muito bem.

- Eu também não.

- E por que o escreveu?

- Tinha que escrever alguma coisa, foi o que consegui na época.

- Você fala como se fosse um velho.

- E sou.

- Tem apenas 38 anos.

- Um escritor já nasce velho, agora vai por uma roupa.

- Minha roupa ainda não secou.

- Veste uma minha.

- Você tem calcinha?

- Fica sem calcinha.

Solange sai para o quarto, Edgar olha para a folha em branco, o mesmo desespero de sempre, o papel em branco congelando seus músculos, anestesiando suas reações, freando sua criatividade, obstruindo sua vontade, sempre igual, sempre, desde sempre. Ele acende um cigarro, vai para perto da janela e solta a fumaça lá fora, a fumaça se mistura com a neblina do não-ser e essa por sua vez lhe invade a mente, entra por cada um de seus poros e se apodera de cada um de seus neurônios exaustos, estafados da própria existência, Edgar costuma olhar pela janela, não importa a hora, às vezes deixa a página pela metade na máquina, a frase pelo meio, o parágrafo incompleto e vai para a janela, os seus olhos então se perdem, lânguidos em direção ao horizonte, o firmamento, nesses momentos se torna um dilema, um paradoxo profundo, uma axioma singular, que Edgar tenta desvendar, tenta exauridamente desvendar os mecanismos do horizonte, mas nada é tão incompleto e pleno ao mesmo tempo, então Edgar volta para a máquina, escreve, desesperado, insano, de uma maneira descontrolada, o suor escorre por sua testa desce pelo nariz, pinga no papel, escreve feito um louco, alguém que desesperadamente cava após descobrir que foi sepultado vivo.

Quando Solange volta, ele ainda fuma apoiado na janela, seus olhos ainda estão imersos na mesma paisagem, ela está vestindo um de seus jeans desbotados, uma de suas camisas brancas, que odeia passar a ferro, o cabelo preso em um coque no alto da cabeça, sorri, parece menos tristes.

- Você já leu Alan Poe?

“ I saw thee once – once – years ago:

I must not say how many – but not many

It was a July midnight; and from out…”

Ela recita quase que cantando, ainda tem a caneca fumegante entre as mãos. Pára junto a janela, ao lado de Edgar, olha para o horizonte, na mesma direção do olhar dele.

- O que você está procurando? – Ela pergunta.

- Estou a espera de um sinal. – Ele diz soltando fumaça em direção a ela.

- Está brincando, não é mesmo?

- Não, falo sério.

- Um sinal de que, para que, por que?

- Não sei, apenas espero, sei que ele virá, e então tudo me será esclarecido.

- Você é doido de pedra, isso sim!

- Onde foi que aprendeu a falar inglês?

- Morei dois anos em Londres.

- O que fazia lá?

- O mesmo que faço aqui.

Por instantes Edgar se recorda das cores do cartaz da propaganda do cigarro, a ilustração de onde saltava o maço aberto, com dois cigarros a mostra, um convite irrecusável, o apelo quase que poético, dotado daquela mesma poesia violenta, no entanto doce, de um filme de Tarantino, um deleite quase que inexplicável, misto de sugestão e delírio, devaneio de todos os sentidos culminando em um desejo tão intenso quanto a própria libido insatisfeita, um desejo espasmódico tomando conta da carne, dos órgãos todos, um desejo visceral, embora consciente, de tomar para si cada elemento do cartaz, desejo, fogo, fúria, poesia, idílio, tudo num misto de comoção e volúpia, ardente, intenso, mágico, puro deleite dos sentidos, uma simples propaganda de cigarro, um simples cartaz numa parede de padaria, um anúncio publicitário e nada mais, tão simples e tão complexo, tão banal e tão completo.

Nesse instante Edgar olha para Solange da mesma forma que olhou para o cartaz, sente nela uma complexidade parecida, igual, idêntica, uma mulher linda, um semblante triste, uma vida encoberta, uma incógnita aberta frente a desrazão de tudo que o cerca, que a cerca da mesma forma, a complexidade simples, pueril de um ser humano, em constante inconstância, sabe que somente a mudança é continua, permanente, a metamorfose diária, mas Edgar não quer saber dessa metamorfose, quer, de certa forma, que todos os dias sejam iguais, por isso ele espera um sinal, enquanto esse sinal não vier nada poderá ser mudado, pensa, tudo deverá permanecer em seus devidos lugares, imaculados, estéreis, imóveis, endossando a própria apatia, tão peculiar a tudo e ao próprio Edgar, enquanto o telefone não toca trazendo a noticia que espera, aflito, desde sempre, desde que saiu da casa dos pais, desde que veio coabitar consigo mesmo, com suas dúvidas, seus tormentos, sua velha Olivetti, herança dos dias que ele ainda não compreendeu, enquanto isso espera um sinal, escreve seus livros, lê outros livros, pensa, talvez os outros também esperem um sinal, talvez todos estejam como ele, apenas não digam, não assumam, não gritem como ele faz, Edgar não sabe o que pensar, não sabe o que dizer, não sabe por que uma propaganda de cigarro, uma simples propaganda de cigarro o fez voltar a fumar dez anos depois de ter abandonado o hábito.

Na noite anterior tinham chegado molhados, ela havia tirado a roupa e ficado completamente nua enquanto andava pela sala, contando as vezes que tomara chuva e o quanto isso lhe deixava feliz e viva, era uma desconhecida e estava ali nua, o cabelo pingando água nos móveis, os lábios roxos do frio, tremia um pouco, Edgar fez um café, ela tomou devagar, ele trouxe uísque, Para esquentar! Ele havia dito, ambos tomaram goles pequenos, a bebida descia queimando, um gole, dois três, ela começou a soluçar, o peito subia e descia a cada espasmo, foi então que Edgar notou que tinha seios também lindos, seios de cartão postal, disse para si mesmo, tudo nela era lindo, pensou, tudo digno de cartão postal, ou de close em capa de revista masculina, a barriga, as pernas, os pés, tudo simétrico, tudo na porção exata, depois do uísque vieram os primeiros beijos, as caricias desesperadas acabaram de dissipar os últimos vestígios da friagem da chuva, fizeram amor, ou algo parecido a isso no sofá mesmo, mas durante o ato Edgar só conseguia pensar no cartaz que vira na parede do bar, a simetria, as cores, as curvas, o gosto salgado da pele dela não fazia sentido algum para ele, o que importava era a propaganda, interrompeu o ato e foi fumar encostado na janela, ela veio para junto dele e também acendeu um cigarro e nus fumaram em silêncio, enquanto a chuva ainda caia violentamente lá fora.

- E se o sinal não vier? – Solange pergunta, tirando Edgar de dentro da propaganda de cigarro.

- Ele virá, eu tenho certeza.

Ele acende outro cigarro.

- O que não entendeu no meu livro?

- Não sei explicar, me senti tão perdida quanto nos primeiros capítulos de Teorema do Pasolini, não sei explicar direito.

Ela também acende um cigarro.

- E você o que não entendeu do próprio livro?

- Não entendi nada, não entendi o motivo, a perspectiva, o personagem central era autobiográfico.

- Não achei que houvesse um personagem central.

- Ai está, não havia, mas era para haver, era para estar ali, na frente de todos, escancarado, gritando coisas, bufando de raiva, louco, alucinado, mas não estava, de alguma forma, se omitiu, eu me omiti, me acovardei, me escondia em capítulos vazios e personagens patéticos, uma trama sem força, um drama sem caráter, um verdadeiro bufão. Não sei se é capaz de me entender.

- Não faz sentido.

- Realmente nada faz sentido, nada mesmo, veja, a gente nem mesmo se conhece e a minutos atrás você estava nua andando pelo meu apartamento, uma completa desconhecida, mas isso não fazia diferença, por que nada faz sentido, nada importa, por isso que eu estou a espera de um sinal, alguma coisa que me arraste para fora desse universo caótico e sem sentido, alguma coisa que me jogue uma dose, mesmo me mínima, de lucidez, entende?

- Você é doido de pedra.

- Talvez essa seja a explicação.

Solange foi embora às três horas da tarde, mas antes disso fizeram sexo mais uma vez, dessa fez debaixo do chuveiro, ela disse que voltaria qualquer dia desses, pegou suas roupas que já estavam secas e saiu deixando a porta aberta, Edgar acendeu mais um cigarro e ficou mais uma vez fumando próximo a janela, de onde viu Solange dobrar a esquina e sumir, o tempo mais uma vez estava nublado, tudo ao redor de Edgar parecia um filme velho, um desfile démodé, uma coisa qualquer parecida com pão embolorado, ele fumava devagar, olhava para o horizonte, ficou assim muitos minutos antes de se sentar de frente a velha Olivetti.

O telefone toca, Edgar se levanta em movimentos lentos, parece estar com sono, a garganta está seca, raspando, está resfriado, constata, foi a chuva da noite anterior, pega o telefone, com uma certa dose de mal humor.

-Alô!

Silêncio do outro lado, ninguém responde, o telefone nem mesmo chia, deve estar com problema, pensa, essas concessionárias não trabalham direito, oferecem um serviço de quinta, incompetentes, pragueja para as paredes com a garganta já ardendo, procura pela garrafa de uísque da véspera, está pela metade, toma um gole, o telefone toca de novo, ele atende e o silêncio se repete, ele resmunga, repete o mesmo protesto contra as empresas da telefonia, mal diz as privatizações dos serviços públicos, pensa em escrever algo a respeito, talvez uma carta mal educada as autoridades competentes, ou incompetentes, ele já não sabe, a garganta arde, se senta de novo em frente a máquina, bate no teclado, a princípio lentamente, tentando captura um fio tênue de inspiração que de todas as formas quer escapar de seu alcance, vai aumentando o ritmo e sovando o teclado, como havia feito com Solange sofá, no principio lentamente enquanto ele balbuciava palavras em inglês, desconexas, algumas ele não compreendia, a medida que ele intensificava seus movimentos e os corpos se molhavam de suor essas palavras pareciam não mais ser inglês, talvez uma língua escandinava qualquer, mas ele não sabia, desconhecia tais idiomas, talvez fosse algum idioma báltico, mas ele não sabia qual a diferença, mas mesmo assim não estava preocupado, entendia o que ela dizia em seu misto de prazer e agonia, sabia muito bem, ela falava do cigarro, repetia as palavras do anúncio, as mesmas palavras que ele não compreendeu por completo o sentido, mas que o fascinaram a ponto de faze-lo acender um cigarro dez anos depois, então ele se enojou de tudo aquilo, do ato mecânico do sexo consensual no sofá da sala, se cansou de toda aquela umidade pegajosa da boceta de Solange, da própria violência inconstante de se seu membro enlouquecido, nada mais fazia sentido, a única coisa que importava era o cartaz pregado na parede da padaria, sentiu uma vontade insuportável de acender um cigarro, foi então que sai de sobre a prostituta e foi em busca do maço de cigarros.

O telefone toca novamente, Edgar espera, ele continua a tocar, uma, duas, três, quatro vezes, na quinta vez ele retira o aparelho, resmunga mal humorado.

- Que merda de telefone.

Ainda silêncio do outro lado, ele bate o aparelho com raiva devolvendo- o ao gancho, silêncio por todo o apartamento, ele volta para a Olivetti, e então seu matraquear se faz supremo, incontestável, é como uma sinfonia de metais, Edgar parece estar enfurecido. A pela janela Edgar constata que já é noite, o estomago dá sinais de vida, movimentos peristálticos, chiados em suas entranhas, mistérios que somente os biólogos se atrevem a presentear com nomenclaturas complicadas e cheias de w e y, fome, a barriga ronca alheia a noite lá fora, alheia ao matraquear da máquina, alheia a vontade de Edgar, um sinal, sinal de que ele precisa urgentemente comer alguma coisa. Ele mais uma vez apanha a jaqueta de motoqueiro e sai para a rua. Faz frio, inverno, as noites tem sido frias e as madrugadas mais ainda, Edgar gosta do frio, queria morar na Europa, ver a neve caindo, vê-la da janela de seu apartamento, vê-la forrando o chão, atrapalhando o transito, fazendo a cidade parar, irritando as pessoas, queria vê-la caída nas calçadas, as crianças brincando de guerra, construindo bonecos com braços de gravetos e nariz de cenoura como nos filmes dublados, horríveis e mal feitos, que passam a tarde no canal 13 e em todos os outros canais, a neve é um sonho, neve no Brasil não tem graça é apenas gelo, neve é na Europa, há o mito, a idéia construída pelo cinema, distribuída em longos rolos enlatados, exibidos em telas brancas, alvas, pálidas, uma ilusão maravilhosa, a neve é mais branca no cinema, é mais branca na Europa, até mesmo a neve no Brasil é de segunda, Edgar caminha com as mãos nos bolsos, os dedos estão gelados, os lábios estão avermelhados, ele anda, poucos estabelecimentos abertos, a noite se afunila e vai ficando cada vez mais fria, na calçada rapazes e moças, calças largas, seguram skate`s, entram em uma Lan House, a grande febre do momento, os jogos eletrônicos, outra imitação dos europeus, o país se rende a Internet, salas de bate papo, relacionamentos virtuais, sexo virtual, compras virtuais, vende-se e compra-se tudo, Edgar respira fundo, aperta todos dedos dentro dos bolsos, entra na Lan House, olha as telas, policromacia retumbante, jogos, Orkut, essa idéia de Orkut Buyukkokten, com um nome desse Edgar se trancaria em um quarto escuro e imploraria por uma morte rápida e sem dor, no entanto o turco fez pior, criou um quarto escuro, onde todos querem entrar, querem se encontrar, se descobrir, Edgar pede um café expresso.

- Não temos café. – Diz uma moça loira de olhos azuis, parece uma adolescente figurinista de um filme europeu qualquer, alemão talvez, até as loiras daqui são menos pálidas que as originais, pensa Edgar, mas não há tempo para pensar mais nada, a moça aguarda uma reação de Edgar.

- Mas lá fora está escrito Syber Café. - É tudo que Edgar consegue dizer.

- É somente uma expressão, senhor. – A moça parece ter um sorriso irônico pendurado nos cantos da boca.

- Obrigado. – Diz ele e sai para o frio da rua.

Edgar viu a ironia na frase da menina. É somente uma expressão, senhor. Até mesmo a nossa ironia é falsificada, constata Edgar mais uma vez tremendo de frio.

A porta do apartamento está aberta, Edgar entra, fecha a porta, tranca o frio do lado de fora, Solange está sentada num canto do sofá, mas uma vez na posição lótus, toma novamente café em uma xícara fumegante, olha para ele e oferece.

- Quer café?

- Queria um expresso, mas não tinha.

- Pois é, café expresso dá pesadelos. – Ela sorri.

- Como foi que entrou?

- A porta estava aberta. Perigoso deixar a porta aberta assim poderia entrar algum ladrão.

- Devo ter esquecido, ando com a cabeça meio fora do lugar.

- Com certeza, estava lá fora procurando o tal sinal?

- Não, estava procurando um café expresso.

Vou buscar café pra você, ela se levanta e Edgar se senta, sente um desconforto, parece ter sentado em um tijolo, se ergue e encontra o controle remoto, aponta para a TV aperta o power, a TV se acende, Edgar procura alguma coisa pra assistir, para em um jogo de vôlei, Brasil e Rússia, vôlei masculino, pára, põem-se assistir o jogo. Solange volta com o café, lhe estende, ele pega, toma, quente, amargo, forte, bem diferente do café expresso que queria tomar.

- O Brasil está ganhando?

- Sim, mas estou torcendo para a Rússia?

- Por que toda essa falta de patriotismo?

- Me diga o nome de um grande escritor brasileiro e eu te direi dez russos.

- Só por causa disso?

- Não lhe parece o bastante?

- Você é mesmo doido de pedra.

O Brasil ganha o jogo, começa a passar um filme em preto e brando, Solange cochila, escorrega para o ombro de Edgar, ele se levanta e deixa o sofá todo para ela, vai se sentar na frente da máquina, contempla a folha datilografa pela metade, se lembra mais uma vez do comercial de cigarro, se sente triste, lá fora começa a chover, a principio uma garoa, depois o vento começa a esmurrar a janela, nem sinal de Solange sair do transe do sono, dorme profundamente, Edgar volta para o texto, acende mais um cigarro, é o penúltimo do maço, tem vontade de sair para a rua para comprar mais, mas a chuva intimida seus ímpetos, ele está cansado, também está com sono, se levanta, pega Solange nos braços e a leva para a cama, ela não acorda, na cama ela se vira para o outro lado, se encolhe, junta as mãos entre as pernas, parece querer voltar a posição fetal, Edgar apaga a luz e fica olhando a chuva cair lá fora, o sono vem vindo aos poucos, ele tenta se manter acordado, fuma mais um cigarro, amassa o maço, joga-o contra a parede, o sono vai o dominado devagar, se deita, olha para o teto, tem vontade de ficar acordado, mas os olhos vão se fechando devagar, a noite vai ficando mais escura e o ruído da chuva mais fraco, Edgar dorme.

Não será essa noite que ele encontrará o que procura.

Odair J. Alves,

Junqueirópolis, 23 de junho de 2008

Odair J Alves
Enviado por Odair J Alves em 24/06/2008
Código do texto: T1049152
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