Nosso último contato
Homem de aparência rude, olhos cansados. A pele maltratada pelo sol intenso da roça já carregava rugas profundas aos 42 anos.
Honorato, de pouca fala e poucos gestos. Olhar manso, e desinteressado. Pai de cinco filhos. Homem cuidadoso, de poucas carícias, e de muita firmeza. Trabalhador exemplar.
Esposou Dona Julieta quando ela tinha apenas dezesseis anos. Foi um pedido do pai da moça, que ele aceitou com prazer, pois era a filha mais bonita do Seu Lucindo. Tornou-se um marido zeloso, de muita atenção e respeito.
Nada poderia ser dito em desabono ao Senhor Honorato Oliveira. Proprietário de pequena porção de terra nos cafundós de Guaxupé, que pagou com sacrifício e muito suor. Neste espaço montou roça de milho e feijão, construiu sua casinha e constituiu família.
Viveu sempre discretamente sem muitos amparos, e sem nenhum luxo. Suas roupas velhas e puídas pareciam ser as mesmas há anos.
Conheci esse sitiante, por acaso:
Era um novembro calorento. Eu estava em viagem pelo interior de Minas Gerais, quando meu carro sofreu uma pane. Lugarzinho inóspito, e poeirento. Estava faminta, cansada, e sem nenhuma perspectiva de socorro naquele fim de mundo. Foi quando apareceu esse homem simples, montando um velho e caquético cavalo marrom, de raça desconhecida. Ele estancou diante de mim, me olhou como se eu fosse um ser de outro planeta, fez uma reverência com a cabeça enquanto tirava o chapéu em forma de respeito, e balbuciou um cumprimento quase inaudível.
Tomando conhecimento do meu problema, propôs-se prontamente a buscar ajuda. Disse, e saiu.
Não acreditei que alguma ajuda viria por intermédio do matuto, mas só tinha isso.
Esperar era a única saída.
Já estava começando a escurecer, e os insetos tomavam conta do silêncio, quando pude ouvir ao longe o ruído de um motor.
Fiquei eufórica!
Era O Nando, o mecânico da cidade. E junto com ele, o Seu Honorato em sua montaria me trazendo uma garrafa de água e uns sequilhos.
Meu veículo foi guinchado para a oficina, e dentro dele, eu.
E o incansável Honorato ao lado do guincho.
O carro ficou com o Nando para consertar. E eu ganhei uma simpática hospedagem na casinha do Seu Honorato e sua família.
Embora cansada, fiquei até muito tarde tagarelando com eles. Contei como eu vivia e o que eu fazia para ganhar a vida. Lembrei algumas piadas e rimos muito. Os meninos tinham muitas histórias engraçadas. Comemos uma saborosa galinhada, cozida com mandioca e cravos da índia, preparada por Dona Julieta que, muito prestativa, fez questão de cozinhar um arroz fresco colorido com açafrão, feijão com miúdos de frango, e salada de alface. Orgulhavam-se em contar que tudo que comíamos ali era fruto do trabalho deles.
Quando o Nando veio trazer meu carro, senti uma pontinha de tristeza em sair de lá. Nos despedimos, trocamos endereços e deixei meu telefone para contato.
Parti imaginando que nunca mais nos veríamos, e isso me incomodava. Mas me sentia realizada por ter conhecido pessoas tão verdadeiras. Fiquei três dias com a família e pude aprender muito sobre como viver bem com o que se tem.
No Natal, enviei-lhes um cartão e uma carta de sincero agradecimento.
Não esperava que me escrevessem, pois nem gostavam muito de falar.
Depois de alguns cartões e cartas contando a minha volta e a venda do meu carro, dona Julieta me escreveu umas linhazinhas tortas, mas com muito sentimento e pureza. Ela contou que o Fernando, filho mais velho, ia se casar em breve, e que Seu Honorato mandava lembrança. E revelou que ele não sabia ler e escrever.
Fiquei feliz por ter recebido notícias.
Voltei lá alguns meses depois para o casamento do filho, e levei muitos presentes para todos.
Seu Honorato vestiu seu velho e bonito paletó de linho azul-marinho, que há muito guardara como símbolo de sua juventude vaidosa. E dona Julieta usou o vestido novo que eu lhe presenteei.
Deixei a casa deles no domingo, e de novo com a triste impressão de que não mais os veria.
Talvez eu estivesse enganada. Talvez eu os visitasse no Natal seguinte.
Mandei carta de agradecimento, e não sei se receberam.
Mandei mais um cartão no Natal do ano seguinte, mas não recebi nenhuma linha.
Sei que eles estão lá naquele sitiozinho pobre, cheio de vida e carinho. Eles sabem que estou aqui em São Paulo em labuta constante, e que penso neles.
A distância nos calou, truncou nossas falas, e nos separou pelo resto de nossas vidas.