Nossa última viagem

Na calçada estreita em cimento riscado, eu esperava pelo Bonde. O horário era seguido à risca, e por conta dessa pontualidade, havia pouca gente esperando.

O condutor Horácio Silveira, um gordo e sorridente senhor de 45 anos, já conhecia todos os passageiros. Pudera, eram muitos anos de trabalho no mesmo trajeto.

Olhei para o relógio de pulso que apontava já 9:35horas, comecei então a fazer uma contagem regressiva, pois Horácio surgiria na esquina em um minuto. Dito e feito! Lá estava ele, subindo a Rua Cardoso de Almeida pavimentada em paralelepípedos justapostos, com seu Bonde, Era a linha 51, que ligava a praça do Correio à Cidade Jardim; a instalação paga pela Companhia City de Desenvolvimento, que lançara os loteamentos dos Jardins Europa e Paulistano... Ajeitei meu casaquinho branco engomado e a lenço em seda pura que meu irmão me presenteou no último Natal. Dei uma dobradela no jornal e me livrei dele imediatamente na lixeira mais próxima. Arrisquei uma última olhada para o relógio. E já fui cumprimentada pelo condutor.

- Bom dia Doutora Ana Maria! Assim iniciávamos nossa prosa diária.

Ao meu lado, uma senhora elegante e perfumada acompanhava nossa conversa. Olhei várias vezes de soslaio e vi que usava laquê nos cabelos, e muito pó de arroz nas faces. Tinha um aspecto soberbo, e muita discrição. Horácio atento, foi logo tratando de fazer as apresentações:

A Doutora ainda não conhece essa figura ilustre que está aí ao seu lado?

Tive então que olhar atentamente para o rosto de minha acompanhante. E o condutor continuava dizendo tratar-se da Professora Doutora Magdalena Albuquerque, Médica Chefe do Hospital das Clínicas, a primeira mulher a galgar um posto de tal importância.

Nos cumprimentamos com cordialidade e seguimos viagem nos entretendo com uma conversa sobre o progresso dos bondes. Falamos dos burros que emporcalhavam as ruas e atravancavam tudo. Que com o advento do Bonde Elétrico, nossa vida tinha tomado novo rumo. Tudo era mais rápido e preciso.

Tantas outras viagens de bonde fizeram com que nos tornássemos boas amigas. Passamos a nos encontrar no final das quintas feiras num bistrô do centro da cidade, para uma conversa mais informal. Trocávamos algumas confidências que só se faz entre grandes amigas

Cinco anos mais tarde eu me casava com seu filho primogênito Afonso Albuquerque. E assim passamos a ser uma família.

Quando Magdalena aposentou-se, me lembro bem de nossa última viagem de bonde. Ela parecia satisfeita pelo dever cumprido, mas entristecida pela rotina que se quebraria.

Seu rosto já estava envelhecido, e as faces não eram mais brindadas pelo pó facial. Ostentava sempre um brando sorriso e demonstrava atenção com todos à sua volta. Mas quisera o destino mostrar-se irônico com minha amiga que naquele dia foi pega de surpresa por uma dor insuportável no peito.

Era de fato sua última viagem...

ANA MARIA MARUGGI
Enviado por ANA MARIA MARUGGI em 21/06/2008
Código do texto: T1044738
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.