CAOS
A noite já havia acabado e ela estava exausta.
– Nossa, já passam das cinco horas da manhã e eu ainda estou acordada!
Pensou em comer algo, mas se lembrou que não havia nada na geladeira nem na despensa da casa. Com a vida que levava, não tinha tempo para cozinhar, e muito menos para fazer compras. Era muita badalação, festas, banquetes, comemorações, etc.
– Estou morrendo de fome, mas vou dormir assim mesmo, quando eu acordar me alimento.
Tomou uma ducha e caiu em sono profundo. O corpo doía como se tivesse apanhado. Foi difícil relaxar, mas enfim conseguiu atingir o estado de sono profundo, sono dos justos, sono que repara as energias perdidas, que revela muitas vezes os nossos maiores e/ou piores segredos, momento em que o homem volta ao seu estado natural...
Carro correndo a 160 km/h. Muitos carros nas avenidas abarrotadas de pessoas. Homens e mulheres andando, correndo sem direção. O tempo ardia como fogo no inferno. A chuva caía como água fervendo, que ao contato com a pele arrancava pedaços. De um lado, pessoas fogem não se sabe do quê. Do outro, homens agarram mulheres, tiram suas roupas e as estupram, matando-as em seguida. Na frente de uma banca de jornal, um menino cheira cola. Atrás desta mesma banca, outro menino, rico, cheira cocaína. E o carro aumentava a velocidade, estava agora a 200 km/h. Na cabeça, pensamentos desconexos, lembranças do passado, erros, acertos, loucuras. No coração, a certeza da culpa pelo que estava acontecendo no mundo.
Atravessando a rua viu um mendigo carregando os seus trapos. Suas mãos estavam destruídas, ensangüentadas. O sangue não era de um ferimento; era da pior ferida que um ser humano pode ter - acabar de matar um gato, e este ser o seu banquete. O sangue e a ferida agora estavam explicados; ferida que não sara e mata milhões em nosso país, em nosso mundo. Quase atropelou o mendigo, mas conseguiu desviar. Ufa! Seria menos um desgraçado no mundo.
Mais à frente viu uma praça. Na praça havia belíssimas obras de arte. Via-se que as obras de arte foram esculpidas de uma forma estranha. Eram homens e mulheres unidos, juntos como um só corpo. Ao se aproximar mais, percebeu que o material utilizado era diferente de tudo que já vira antes. Viu que era claro, vivo. Coçou a vista e assim conseguiu ver exatamente o que era o tal material. Eram cadáveres unidos com costura cirúrgica. Houve uma chacina num presídio próximo à praça, que atingiu o pavilhão dos homens e o das mulheres. O resultado disso eram as esculturas. Retrato de uma sociedade que mata quem atravessar à sua frente.
Velocidade chegando na casa dos 250 km/h. O carro parecia que ía levantar vôo, como um supersônico. Passou a praça, atingiu uma estação de trens. Na estação, avistou uma das cenas mais horrendas de toda a sua vida. Em meio a idas e vindas de homens e mulheres, correria geral. Viu vários tonéis. Os tonéis, de cor azul, eram gigantescos. Percebeu uma aglomeração em volta dos recipientes. Quando olhou melhor, que horror! Homens e cães disputavam restos de comida. Lutavam como titãs, mordendo-se mutuamente. O sangue, os pedaços de carne arrancados das faces, focinhos, braços, pernas e patas pulavam da turba enfurecida. Que cena terrível! Onde chegamos meu Deus! Deus, que Deus? Você o havia esquecido. No meio daquela confusão, voavam também cabelos, pêlos, unhas, olhos. O que sobrava eram monstros mutilados de cães e homens. O que sobrou foi o resultado de um mundo que esquece, desrespeita e não olha para os mais necessitados.
Passando à frente da estação, viu um grupo de policiais - Graças a Deus, vão dissipar essa gente, esse lixo - pensou ela. O egoísmo prevalecia. A velocidade chegou à incrível marca de 400 km/h. O desespero e o medo de arrenbentar-se eram mais fortes do que os sentimentos. O asco a tudo e a todos era o sinal de que o coração desestruturado não cede fácil. Não cede porque o sentimento materialista está acima dos sentimentos profundos. Não cede porque a vida glamourosa da fama deixa marcas na alma, deixa cicatrizes muitas vezes incuráveis.
- Meus Deus, o que fiz comigo mesma! Até que ponto venci na vida? - pensava ela. A rua não terminava e o carro corria, corria, corria a 560 km/h. - Vou me arrebentar num muro. Vou me arrebentar, me destruir em pedacinhos e finalmente vou virar capa da revista famosa que tanto sonhei. O que será de mim meu Deus? Serei lembrada apenas como uma promessa da moda? E o que deixei na consciência? Somente tesão, beleza e maquiagem? O que fiz comigooooooo? - ela pensava. Mas o carro não parava, não parava, não parava, corria sem rumo. Não existiam mais construções, agora era tudo escuro, negro, sem fim. E no fim dessa imensa escuridão, avistou uma árvore. Como a velocidade era exagerada, não enxergava muito bem o que estava acontecendo. Incrível é que, somente quando se aproximava, a velocidade permitia que se enxergasse nitidamente as cenas. Avistou um homem, provavelmente o pai. Uma mulher, a mãe. Uma menina, a filha, e um menino, o filho. O pai tinha as mãos na cintura da filha. A filha, de quatro, gritava, gritava. Era o grito do fim dos ideais dos homens. O bem maior de uma sociedade estava ali, de quatro, sendo atacada, sendo destruída. Algumas pessoas assistiam à cena, mas não faziam nada. Hoje em dia tudo é norrmall! A mãe também assistia à cena, mas estava muito ocupada, pois estava deitada transando com o filho. Ela olhava para o pai e a cena que proporcionava, e gozava, gozava, gozava. É isso, gozar é o que importa. Educação dos filhos, porra nenhuma! Atenção, carinho e amor? Primeiro Eu, segundo Eu, depois Eu. Tenho que pensar em mim, nas minhas unhas, cabelos, carros importados, lanchas, dinheiro no banco, amantes. Fodam-se essas merdas que pari! A cena de sexo familiar nada mais era que um retrato do que temos dentro das nossas casas, a grosso modo, é claro. O sentimento de fraternidade morreu nas mãos e nas nossas cabeças insanas e taradas por valores distorcidos. A família se destrói assim.
Passando a tal árvore, olhou o velocímetro e viu 850 km/h - Aonde vou, ou melhor dizendo, aonde vamos parar com tudo isso? Percorreu mais 5 km e viu um banco. Fachada enorme, pompuda, digna de homens nobres. Na sua porta viu o dono do banco. Este se afogava em notas. Afogava-se com uma expressão de felicidade. Estava morrendo sufocado, mas tudo bem. Durante 60 anos de sua vida havia juntado aquela fortuna. Agora, fora tudo colocado numa espécie de piscina gigantesca e o cara afogava-se nas suas riquezas. Que expressão de loucura havia no seu semblante. Era uma felicidade louca. Muitos precisavam de muito menos que 0,5% daquele dinheiro todo para alimentar-se, mas o banqueiro juntou tudo numa piscina e um minuto depois estava morto, sufocado pela papelada. É assim que esses homens vivem: para acumular riquezas e só. Nada para o próximo. Nada de repartir e dar de comer a quem precisa. – Eu não sou banqueira! Apenas servi de objeto nas noites de prazer para poder comprar meu carro importado. Este tipo de carro era meu sonho de consumo. Não sabia que ao alimentar este sonho eu consumia, na realidade, vidas. - divagava ela. A velocidade agora estava insuportável: 934 km/h, 950, 970, 980, 988, 996………, 1000………… Buuuummmmmmmmmmmmmm!
EXPLODIU!!!
Acordou com o braço e o rosto machucados. Olhou em volta e viu que havia caído da cama.
– Nossa, que sonho terrível! O que foi que eu fiz para ter sonhado tudo aquilo?
Ana Nóbrega Farias era uma famosa modelo. Começou sua carreira no sofá de um produtor, onde perdeu sua virgindade. Aos 15 anos já desfilava em vários eventos de moda e aos 16 ficou famosa ao ser reconhecida como a modelo mais bonita do Brasil. A partir daí, ganhou o mundo: Milão, Nova Iorque, Roma, ... Viajou os quatro cantos do mundo. Conhecia e transava com todos os homens que passavam em seu caminho. Aos 17 anos e meio, pousou nua pela primeira vez, mas não teve muito sucesso. Aos 19, posou nua novamente, e aí sim ganhou o apelido de símbolo sexual. Desde menina sonhava com isso. Era filha de um poderoso empresário e de uma socialite. Fora contaminada pela vil doença. Na sua casa, viveu boa parte de sua vida de criança nas mãos de babás e empregados. Os pais não tinham tempo para ela. Se teve carinho, foi pelas mãos dessas pessoas, e pelas mãos delas também foram os poucos ensinamentos nobres que recebeu. Na realidade, o que era hoje foi construído após anos e anos de muito ódio de sua família. Como o seu pai, queria acumular riquezas, e aos 22 já estava rica. Além dos trabalhos no mundo da moda, era acompanhante de executivos. Participava de orgias, bacanais, e por isso ganhava em torno de 20.000 por mês. Em um ano eram 220.000. Tirando as despesas, fez muita grana, mas também gastou muita grana. O seu corpo tinha que sofrer manutenções: lipoaspiração, silicone nos seios, na bunda, cirurgia reparadora de nariz, olhos, corpo inteiro. Quando percebeu, gastou mais do que ganhou. Viu que essa vida não levava a nada. Mesmo assim, insistiu. Como perdeu dinheiro, muito dinheiro, aos 26 anos se transformou totalmente numa garota de programa. Hoje, aos 28 anos, está destruída pelas drogas e pelo álcool. Eles são a fuga para essas pessoas. Os pais faliram com o negócio que tinham. Eram donos de uma indústria que fabricava componentes para motores de automóveis. Com a crise no país, a indústria destruiu-se, desceu ralo abaixo. Destino para quem acha que o dinheiro é tudo. Ana ficou sem rumo e a única saída foi continuar com as noites de programa. Se ganhava 200 numa noite, gastava 300 com cocaína, uísque e medicamentos. Devido à profissão, tinha inflamações vaginais crônicas. Aliás, já não sentia mais nada. Deitava-se, abria as pernas e pronto, serviço completo: sexo vaginal, anal, oral. Era especialista em tudo, só não era especialista em construir vida. Na realidade, viu que tudo o que conquistou não foi nada mais nada menos do que o caos.
O carro era a sua consciência. A velocidade, o tempo que corre e vai nos mostrando, passo a passo, tudo aquilo que precisamos repensar e reconstruir. A explosão é o que acontece todas as vezes que nos damos conta de que sempre é tempo de recomeçar, nem que se tenha que dar um fim em tudo, para assim nascer novos sentimentos, novas filosofias, que vão nos levar a ter uma vida e uma sociedade mais justas.
MARCELO PEREIRA