EXAME DE VISTA

Precisava subir na laje para ajeitar a antena. Fora nesta hora que sentira a falta de um homem, e antes de levantar-se do sofá para trocar de canal ou acho que mesmo desligar a televisão, tentou se lembrara aonde esquecera o controle remoto...e que susto! Ele era homem, sim era homem. Vinicius riu consigo mesmo, perdido de um pejo bobo, decidindo-se pelo desligar da televisão.E sentiu o doido silêncio que ficara o enlouquecer um pouco naquele instante.Era magro e transparente agora, na janela, ao sol que lhe batia em cheio e ele tentava adivinhar, além do muro, se havia movimento na rua.

Dera um grande e ruidoso bocejo para o fatídico da tarde de sábado.

Pensava em um homem, em um homem só para si e daqui a pouco chegariam à irmã e o cunhado, e a casa voltaria, sem querer já ficando, estranha ao seu hábito ali.

Eles: um casal hetero tomava um sábado naturalmente; enquanto ele em paz pensava em como tomar um sábado sem causar transtornos.

Vinicius fora na direção do quarto que lhe coubera, e dentro da gaveta da cômoda rosa-despedida ele tentava encontrar uma camisa que não o revelasse tanto. Ele se esquecia que tinha identidade íntima e revelava-se sem que desse, particularmente, conta disto.

Resolveu que seria assim como é mesmo – no que ao meio – por hoje só, por hoje só e mais alguns diazinhos.

A rua parecia morna de movimentos como se todos estivessem se escondido com medo de também serem revelados.

Um barzinho à esquina as mesas pareciam a toas para o sol que lhes refletia na toalha de oleado vermelho, e com os paliteiros apostrofes como obeliscos. Os garçons em fila e com as mãos cruzadas nas costas, estavam a espera que a tarde de todo cedesse.A musica triste no fundo do barzinho aumentava a angustia.

Vinicius quase sinceramente pensou... Porém a própria aflição dos garçons, tão suplicativos no à se dispor, o assustara e o fizera se abater dali como que atirado as pressas.

A cidade começava despertada, e o silêncio cheio de ruídos amorfos, e onde estavam todos?

Não veriam toda a hora da noite chegar... E a lua parecendo apagada e fina como cristal no céu todo azul.

Vinicius vira à sua direita a floricultura: tão colorida e cheirosa. E a floricultura o chamava.E além do pequeno mundo de flores, descansava alguém recostado ao balcão, no entanto era tão agreste.Era como um cacto...Um belo cacto que se pôs no meio das flores.Por que o próprio sorriso forçado era assim.Ele exibia os belos espinhos nos labiozinhos casmurros, o cenho que se cerrava livre como o sorriso, e as inúmeras e confusas tatuagens nos seus braços fortes.

Vinicius procurava a presença das flores embora não podia parecer. O olhar perturbável do cacto parecia adivinhar uma coisa que ele mesmo não identificara.

Um sorriso à-toa que ele dera a folhear uma revista... Era mesmo uma revista? O assustara aquele sorriso. Era o sorriso que o mandava cair fora como com a certeza de que ali não era bem-vindo.No entanto estava no meio das flores.Era um direito de cidadão seu estar ali.Não seria expulso, no entanto tinha aquela quase certeza que estava ali só mesmo pelas flores.Era um direito de cidadão seu estar ali.Não seria expulso, no entanto tinha aquela quase certeza que estava ali mesmo só pelas flores.E não que era mesmo uma floricultura!

Aproximou-se, embora tivesse cautela, era clara a sua identidade íntima. Estava assustado, tendo que o cacto o olhava nos olhos, e no sorriso se assistia o furor.

-Vou levar um buquê de botões amarelos – disse com a voz tremida e mais tremida ainda ficara diante do sorriso de pouco caso daquele que percebera seu medo.

-Pode escolher – disse dilacerante e ameaçador voltando seus olhos em seguida para a revista que tornara a folhear.

Sim, ele poderia escolher o buquê. Mas como? E antes do “mas como” o para quem... Para quem daria? E olhara para os buquês alegres sobre jarros no canto iluminado da loja, e olhando de volta para o cacto atrás do balcão, este fingia não prestar atenção sabendo que ele o olhava, e não largava aquele sorriso cheio de maldade no canto da boca. O sorriso do cacto queria dizer alguma coisa.Que poderia mata-lo, ou tão meramente esmaga-lo como um inseto.

E se a tarde houvesse cedido lá fora? Não é que se ouvia nada. Ele, apenas ele, e se associava a si mesmo como a todo resto do mundo.E associava o mundo àquela cidade ou tão simplesmente aquela rua.

E aquele olhar obliquo indo embora quase más vindo tão carregado: era ojeriza intensa como o roxo vivo que não existe nas flores. Como podia escolher se todos os buquês amarelos eram igualmente amarelos? E de repente ali tudo era muito igual, onde encontraria o diferencial.

O cacto, e este iria espetá-lo...

E levara os botões amarelos, vendo que não devia mais adiar a indecisão, porque não havia motivo para indecisão. E o cacto já começava espetá-lo. E se o cacto, na verdade, nem se incomodara com sua rosa-transparente-presença?

Isto não era mais importante – ele não agüentara – e já saía pelas ruas aceso pela tarde, amarelo com aquele buquê amarelo, e tão logo descobrira porque escolhera o amarelo. Era uma provocação a si mesmo.Punia-se por se parecer tanto o que era nuns detalhes quase imperceptíveis.

O que faria com o buquê de botões amarelos era mais importante agora. E tão que nem a tarde vira ceder enfim.

-Ganhou rosas? Perguntaria a irmã, mais tarde, quando entrasse no quarto e visse então estas dentro de um jarro de acrílico com água sobre a cômoda rosa-despedida.

Os vidros de colônias ficaram apertados ao redor do jarro resplandecente, e o espelho de três faces da cômoda refletia o tudo. Vinicius sorriu e seu sorriso saiu no espelho dentre rosas amarelas que logo desabrochariam.

Iriam desabrochar logo no abafado da noite que chegaria... A noite que corre apressada e traz logo o sono, a sensação de perda de um dia inteiro.

Vinicius desabou de costas na cama, pequena e forrada de colcha de retalhos, e olhara para o forro do telhado, e na escuridão que já ia tomando o quarto tentava adivinhar as cegas onde estava o comutador. E foi que adiando, adiando, é que encontrou o pensamento verdadeiro.O que o fulminara.O que o levara a comprar o buquê de botões amarelos.E aquele perfume das rosas se desabrochando no escuro recheados de ruídos que vinham da rua; a rua que acordava.O cheiro do amarelo que desabrochava e acendia a penumbra era o cacto.O cacto que ele queria ali.Era a graça que as flores, inutilmente, ocupavam...

Vinicius não admitia, afinal era covardia admitir, e não podia negar embora... era verdade.Por dentro doeu tão forte a sinceridade que se encolhera como feto na cama, e ao invés de chorar que era o certo, sorriu de desespero por si mesmo que era tão evidente.

Sabia já machucado, continuaria machucando-se. À quem devia sua intimidade implícita? E era tão sem querer que se mostrasse. Se pudesse não machucaria mais o mundo.Mas se estar vivo era bom devia ser apenas porque se machucava alguém.

A irmã lhe tinha o horror secreto de quem esconde o seu conceito, e o cunhado quase procurava não existir à sua frente com medo de atingi-lo com sua bravura contrária.

Quando criança com a mãe, que pouco o suportara depois disto, era só achar que o mundo era dos brinquedos e dos gibis e que nada doeria tão de verdade a ponto de não ter um remédio que desse jeito.

Mas o mundo era tão real e mais feito dos contra do que dos a favor.

E rindo, tão desesperado no escuro que tomara todo quarto, procurou o que o faria ser contra. E procurava algo que lhe desse sede de ódio, desejo de cinismo, ele procurava esses elementos básicos para se tornar um ser humano essencial ao planeta.

Só ele sobrava?

Já sabia que rompida a solidão pelo cinismo e o pernotismo ele encontraria o caminho fácil para estar integrado e não sobrar.

Bem, na verdade ele ria com medo, sendo que era tão necessário. E não é que a lua despontava quase cheia na sua janela aberta e pelo transparente da cortina iluminava azul denso onde ele estava.E olhando seus braços, seu corpo, e os sentindo fora que ele se admitira um rapaz.E amanhã de novo como sempre seria a vez do sol,e ele poderia ficar fingidamente corado no seu transparente habitual – assim começava – dos pequenos fingimentos tão naturais do céu e da atmosfera, e logo de si no exterior até tão fácil encontrar o íntimo, e então não seria mais quem é, e sim quem deveria ser.

Levantou-se e quase as cegas encontrara o comutador. Já podia enganar porque a escuridão já não dizia mais nada: era só a escuridão...

Os botões desabrochavam todos apressados, e eram como lábios que se abriam para um sorriso.

Vinicius ouvira então o barulho “alegre” da irmã e do cunhado que chegavam a casa. E era preciso que se explodissem para que se soubesse que estava feliz, era preciso ou então não seria estar feliz.Adivinhava-se as coisas na monotonia do dia e dos diálogos e isto era um pouco de violência.É claro que era violência.O susto de descobrir que era homem enquanto pensava em um para ajeitar a antena.Vinicius viu que também era capaz de violência.E assim começara a viver tão forte que o antes, até agora, fora como se fosse uma pedra.

Agora pensava no rapaz da floricultura, que era um cacto – sem medo por dentro porque estava só por fora – o imaginara ajeitando a antena na hora exata em que precisara, e o chamando lá de cima a perguntar se estava bom. Não contava com o se espetar já se espetando.

E quando colocou a mão na maçaneta para abrir a porta fora, que com susto, se lembrara, se lembrara então o porquê que saíra à rua, se é que tinha que haver um por que. É que fora a procura de uma ótica: as vistas, não propriamente, mas a elegância que achava no usar óculos.

E agora, por enquanto, nada disso importava...

O mundo adquiria um sentido, por si mesmo, dentro dele.

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AUTOR :RODNEY ARAGÃO

23 DE AGOSTO DE 2004