A Planta
A Planta
conto
Pedro chegava... E quando vinha bêbado era um suplício para Alda. Não que ele lhe batesse, mas falava alto, xingava, ofendia. Ela se recolhia à cozinha e ficava observando a plantinha, sobre a geladeira, que crescia feliz e viçosa. Era a única em toda a casa. Terra, água e muita claridade, bastavam para que o vegetal se desenvolvesse no silêncio de sua própria vida. Comprara-a de um desconhecido na rua.
Se a planta parecia satisfeita em seu mundo vegetativo, o mesmo não acontecia com o marido que se habituara a beber. Há cinco anos estavam casados. Não tinham filhos e não se importavam em saber a causa. O dinheiro era escasso e mais uma boca para sustentar só torná-lo-ia mais curto. Condomínio, aluguel, comida... E a plantinha vivia ali, alheia aos problemas dos donos, crescendo, surgindo em novas folhas...
As duas eram amigas. Ficavam juntas tardes a fio. Alda resmungava-lhe coisas. Contava-lhe suas decepções, sonhos não realizados. Saíra de casa por não suportar mais o domínio paterno. Não que fosse mulher de idéias independentes. Ao contrário, era repleta de medos e dúvidas. Mas, por isso mesmo, tomada de coragem, decidira enfrentar a vida sozinha. Aprendeu a fazer unhas e colocada num salão de barbeiro, tornou-se manicura elogiada , exigida pelos fregueses. Preferia trabalhar com homens que a agradavam, não só com galanteios, mas também com generosas gorjetas...
Foi num entardecer que Pedro apareceu pela primeira vez no salão. Achou-o simpático, quase bonito. As mãos grandes eram bem feitas. Os dedos compridos pareciam de pianista. A voz calma, o olhar penetrante, a pele amorenada cobrindo o corpo musculoso, não encontraram barreiras e conquistaram-na. Ela também, tipo físico pequeno, feminino agradou Pedro. Existiam tão solitários! E em um ano e meio estavam casados.
Pedro , ciumento, sabedor das "cantadas" que Alda recebia dos indivíduos freqüentadores do salão, decidiu que sua mulher não trabalharia fora. Cuidar do lar, dele e dos futuros filhos seria sua missão. O dinheiro, ele traria para dentro de casa. Era forte, saudável e ambicioso. Alda sentiu-se protegida e não se opôs à decisão.
No início foi tudo cor de rosa, principesco. Antes de sair para o serviço, Pedro usava expressões carinhosas para despedir-se: minha pequena... fica com Deus... queridinha do papai... Mas essas frases deterioraram. O homem que esbravejava no outro compartimento da casa já não era o mesmo. Barrigudo, gorducho, olhos injetados de sangue, a fala enrolada, parecia um verdadeiro demônio. Ele costumava, nessas ocasiões de muitos "gorós", jogar-lhe na cara:
___ Nosso casamento não passa de uma xoxota mal lubrificada...
Alda não se considerava uma messalina de alcova, uma fêmea mirabolante. Como tantas outras mulheres nunca tivera orgasmos com Pedro. Que ele se satisfizesse sobre ela. Que dominasse a situação, macho. No princípio, esse esquema funcionou, mas com o decorrer dos anos de mesmices ele passou a exigir variações. Queria sodomizá-la, desejava sexo oral. Não, aquilo ela não concordava, aquilo ela não faria: doía, sentia nojo. As discordâncias entre ambos ainda haviam de separá-los. Quando confessou a Pedro, antes do casamento, numa bolinação mais ousada que era virgem, sentou um brilho de satisfação nos olhos dele.
___ É difícil de acreditar nos dias de hoje! Mulher trabalhando fora... Eu mereço, murmurou o rapaz...
Um dia recebeu a visita, na ausência de Pedro, de colega dos tempos de salão. Penalizada com a situação, aconselhou: "dá água de cu lavado pra ele, menina! É tiro e queda!" Fizera isso com sua cara metade e o tinha na palma da mão. Se não desse resultado que não desanimasse, conhecia uma bruxa que fazia "trabalho" excelentes em cuecas e por preço camarada. O nome dele escrito numa vela partida e acesa ao contrário também dava resultado. Não! Alda não desejava fazer isso com o marido. Não o queria descaracterizado, porém o pretendia menos agressivo:
___ Pequena puta! berrava Pedro.
Era assim que a chamava se não a encontrava na sala. Dizia que não tinha mulher, mas sim uma empregada a limpar a casa com esmero e fazer bons pratos. Isso era pouco. Estava farto de penetrar aquela pedra de gelo.
___ Onde está a pequena puta? O chefe da casa chegou! Vem tirar meus sapatos que não consigo... putinha! Cuida melhor dessa planta nojenta do quede mim! Qualquer dia eu dou um fim nessa miserável...
Alda sofria, às vezes, de dores de cabeça. Quando criança eram terríveis. Ela ingeria comprimidos e o alívio vinha. Contudo, ultimamente, quem sabe pela precária relação com Pedro, o mal estar se tornava constante. Num desses momentos em que se recuperava, sentada na poltrona da sala, teve a impressão que alguém a chamava da cozinha.
___ Alda!
Intrigada, ergueu-se e foi ver quem era. Podia ser alguma vizinha. Ninguém. A porta aberta deixava o vento entrar balançando as folhas da planta. Fechou-a. Sabia que algumas não gostavam de ar encanado. Em outra oportunidade, tomada de forte crise, quase desmaiou. Ainda dessa vez teve a certeza de escutar:
___ Alda, o que você tem?
Contou o fato para Pedro, que num de seus raros instantes de sobriedade observou às gargalhadas:
___ Você deve ir ao médico. Pode ser algum tumor. Ainda ouve vozes, isso é mau sinal...
Estaria ficando louca? indagou-se Alda.
A vida continuou de mal a pior. Pedro foi mandado embora do emprego e custou a arranjar outro. E no dia do aniversário de Alda o fantástico aconteceu. O marido, de serviço novo, telefonou avisando que não o esperasse para o almoço. Ela meio indisposta não tocou na comida e foi repousar. Fazia calor. Despiu-se. Nua, deitou-se e adormeceu... A voz chamou-a na penumbra do quarto:
___ Alda, minha querida!
Alda abriu os olhos. Sentiu leve brisa e algo ao seu lado, na cama, subindo em seu corpo como Pedro fazia para copular. Era a planta, crescida, com o grosso caule entre suas pernas. Os talos das folhas pareciam braços. Envolviam-na, apertavam-na como um ardente amante. Em princípio Alda ficou atemorizada, depois foi invadida por intenso tremor. Gemia, retorcia-se, gozava como nunca, tendo parte do caule da planta dentro de si. Como uma língua ávida, folhas roçavam à sua. Misturava nódoa à sua saliva, levando-a a um torvelinho de prazer...
Pedro, tentando abrir a porta, não encontrou o chaveiro no bolso de costume. Não queria tocar a campainha e estragar a surpresa. Comprara um presente para dar à esposa. Desejava reconciliar-se com ela. Fora tão mesquinho com Alda, maltratando-a sob o efeito do álcool... Revolveu o fundo da pasta que trazia à mão e encontrou a chave. Pegou-a, abriu a porta. Não encontrou Alda na sala. Procurou-a no quarto. O que viu, deixou-o petrificado. A mulher pelada, estendida no leito, tinha as pernas abertas. Empalada, coberta de pedaços de folhas, mostrava no rosto ar de êxtase. Pelos cantos da boca escorria líquido leitoso. Parecia morta. Chamou-a, tocou-a, estava rígida... O homem foi para a cozinha desnorteado. Pegou um copo de água. Em cima da geladeira, no lugar da planta, o desditoso marido leu: Comigo Ninguém Pode!
Do livro Risos e Espelhos-1989-
Pablo Ribeiro