ARMAGEDOM

Segunda-feira. Trabalho intenso. Dia abafado. As pessoas na rua caminhavam com dificuldade. Fazia muito calor e os termômetros marcavam trinta e cinco graus. Já não chovia há um mês. O clima seco, o asfalto, o concreto, os prédios, os carros… Parecia a fórmula do inferno, e lá estava eu consumindo mais um cigarro. Em frente ao edifício em que eu trabalhava, contemplava todo aquele cenário. Estava irritadiço, pois sempre odiei o calor. No meu escritório havia ar condicionado, mas o mesmo quase não era ligado - como pode, com este calor, o pessoal da empresa deixar o ar desligado?! - falei sozinho. Quando de repente comecei a sentir uma dor. A dor começou pelas costas, na altura dos rins, foi aumentando, aumentando, aumentando… Quase desmaiei de tanta dor. Não sabia o que estava acontecendo, só sabia que tinha que sair correndo daquele lugar e procurar ajuda. Todos que passavam viam o meu sofrimento, mas nada, ninguém percebeu que eu estava naquele estado. Comecei a me agachar, me contorcer, e cheguei a deitar no chão. Mas ninguém, ninguém deu atenção. É assim nas grandes cidades, você pode até morrer que nenhum transeunte vai ligar para você. Eu continuava sentindo aquela dor, o desespero aumentando, parecia que todo o meu corpo estava dolorido. A dor vinha das pernas e ía subindo, alcançando, imaginem, a cabeça e os olhos. Lutei para não desmaiar, mas foi em vão. O desmaio veio e não vi mais nada. Fiquei na escuridão durante um longo tempo. Nem sei por quanto tempo. Quando acordei, estava ainda com muita dor. Não consigo descrever o local, muito menos as pessoas que me cercavam. Vestiam túnicas pretas, como os magistrados. A única certeza que passei a ter foi que eram juízes em pleno tribunal. Eu estava amarrado, preso a uma mesa que servia como meio de tortura e reflexão. Refletir sobre o quê afinal? Tenho sido uma boa pessoa, um excelente trabalhador, um bom cidadão. Percebi que o julgamento não era o meu. Eu era apenas um assistente. Por que estava amarrado? Tentei argumentar, mas não foi possível. Desta vez não pude fazer nada... Mais tarde compreendi que estava amarrado pelo motivo de sempre: estar tentando salvar o mundo o tempo inteiro. As minhas dores aumentavam à medida que as pessoas eram julgadas. Vi uma infinidade de amigos meus sendo julgados e condenados. Vi inimigos também. Vi colegas de trabalho, de escola, de faculdade. A pior cena foi quando vi os meus familiares também sendo sentenciados. Tentei gritar, falar, e assim impedir as terríveis conseqüências. As dores só aumentavam e eu estava ficando desesperado. Todas aquelas pessoas sendo sentenciadas, eu tentando conter o julgamento e a dor que não parava de me massacrar. Nossa, até quando eu teria que agüentar aquilo? Talvez, se eu tivesse me preparado anteriormente, pelo menos teria a chance de não sofrer tanto. Nós, humanos, vivemos tentando nos preparar para tudo e para todos, mas, no fundo, somos desesperados e a vida é que vai nos ensinar como viver, ou melhor dizendo, como conviver sem sofrer, pois cada um que passa em nossas vidas pode transformar-se em uma flor que emana o amor e a harmonia, mas também pode ser a seta destruidora que vai acabar com os nossos dias, nos reduzindo à tristeza e destruição. Como posso ter essas reflexões somente agora, do alto da minha meia idade. Por que não refleti sobre isso antes de estar acontecendo tudo aquilo? Devo confessar que ainda sou um romântico, um daqueles que ainda acredita em tudo o que é puro e belo. Na minha frente só vejo o desenrolar de pessoas boas que jamais vão me machucar. É a esperança na vida que ainda conservo forte dentro do meu ser, e por isso eu também estava sendo punido naquele julgamento de horrores. Todo homem ou mulher deve ser meio a meio, acreditar na vida, mas ter, como se diz na gíria, um olho no padre e outro na missa, pois a cada momento podemos encontrar a destruição; pode ser na próxima rua, na próxima esquina da vida. Devemos salvar o nosso mundo. Cada um de nós tem que passar por bons e maus momentos. Os salvadores do mundo acabam como eu, naquela sala de torturas.

Quando voltei do estado de torpor, percebi, ou melhor, me vi numa cama de hospital. Já não sentia mais dores. Tudo havia desaparecido e agora experimentava uma sensação de alívio. Os médicos, de branco, estavam à minha volta. Todos me olhavam e comentavam entre si algo que eu não pude entender. A minha cabeça ainda não estava normal. Havia sentido muitas dores e vi coisas que me deixaram muito triste. Somente após alguns minutos, um médico aproximou-se e disse:

- Senhor, por favor, acorde.

- Sim, estou acordado - respondi meio perdido.

- O senhor teve uma forte crise renal em plena rua.

- Nossa! Como aconteceu isso?

- Não sabemos. O senhor chegou acompanhado de um velhinho de barba branca. Também não sabemos a identidade desse velhinho.

- Não conheço nenhum velhinho. Há quanto tempo estou aqui?

- Há pelo menos quatro horas. Permaneceu o tempo todo desmaiado.

- Cadê o tribunal, os juízes, os homens de preto?

- Desculpe, o senhor deve ter tido alucinações. Realmente, a crise renal pode provocar tais coisas.

- Por favor doutor, preciso de respostas. E o velhinho, onde ele está?

- Desculpe, não sabemos nada sobre ele. Apenas disse que o senhor precisava de ajuda, pois estava com dores, muitas dores. Explicou também que a sua dor não se resumia à dor física. O senhor possuía a pior dor de todos os homens, a dor da alma, e ele era o único que entendia o que o senhor sentia, por isso tratou de curar todas essas mazelas do espírito e estava entregando o senhor aqui no hospital para que curássemos a dor do corpo.

Fiquei em silêncio. Já havia entendido tudo.

- Não entendemos muito bem o que ele quis dizer com aquilo tudo, mas a única coisa que posso explicar é que todos nós, sem exceção, sentimos uma vontade enorme de fazer uma oração e nos aproximarmos mais de Deus. Sentimos que todos os homens, sem nenhuma exceção, precisam se aproximar do seu coração e da luz que ele pode emanar. Não devemos machucar ninguém, nem que para isso tenhamos que sofrer e perder vantagens.

Fiquei em silêncio e passei a meditar sobre o que tinha sido tudo aquilo. Não encontrei explicação, é claro. Para as coisas do espírito, nada se enxerga pela razão. É pura abstração e fé em um mundo melhor, que nos cure de tudo que é miserável e triste. Viva os velhinhos que andam por todo lado, semeando o amor, a paz e a harmonia por onde quer que passem.

Nos dias atuais, o número de velhinhos diminui na proporção que diminuem os bons de coração. O cataclisma se aproxima na velocidade das cidades, das drogas, dos crimes, do sexo promíscuo, dos valores invertidos e da frieza materialista. Sociedade desestruturada e suicida.

MARCELO PEREIRA