Menos no cemitério
Nunca nos lembramos do sofrimento alheio. Construímos reclamações no nosso dia a dia e nos esquecemos do que acaba acontecendo ao nosso redor. Nossos parentes, nossos amigos, os colegas, todos estão vivendo no mesmo ambiente que nós, mas não damos valor necessário, na maioria das vezes, aos seus sofrimentos. Então, lamentar ininterruptamente é o que nos interessa, em um reflexo egoísta do viver só para si.
Passeei na favela e vi a dor da desilusão e o descaso com a cidadania que nós temos para com nossos amiguinhos que ali vivem. Fui a meu bar de ponta de rua de um bairro pobre e encontrei um pretenso cidadão afogando-se no álcool, para esquecer débitos que não conseguira saldar. Seus amigos alimentavam seu gesto, embebedando-se com ele.
Estava com tempo suficiente para passear e dali fui até um baixo meretrício. Encontrei Dina, chorando, sorrindo e embriagando-se. Procurava diluir as indóceis marcas que a vida de mulher pobre e desrespeitada havia lhe favorecido. Ninguém imaginava que seu único filho estava em casa, febril e debilitado e ela não havia deixado remédios para ele, por falta de dinheiro. Sua clientela daquela noite estava ausente, e só a chuva forte e as más lembranças lhe faziam companhia.
Alguém me pede esmola. Não dou! Sou xingado até não querer mais. Tenho receio de que o garoto danifique o carro onde estou e saio apressado. É quase tardinha e resolvo investir filosoficamente no passeio, e parar, e entrar no cemitério. Há um silêncio excessivo. Nem os pássaros estão cantando. O velho guardião do campo santo prepara-se para fechar seu dia de trabalho e o cemitério. Vejo as chaves do portão arrumadas em sua mão direita. Dirigindo-me a palavra, ele diz:
-O que o jovem quer a essa hora aqui? Passear num cemitério? O que pensa achar nele?
-Não sei! Talvez o que ainda não consegui achar fora dele.
-Lugar de doido é noutra praça, moço. Eu agora tenho que fechar o portão. Outro dia o senhor chega mais cedo. Tá ouvindo?
Dei meia volta e desci a ladeira de paralelepípedo, cruzando com alguns perdidos transeuntes que faziam o Cooper vespertino. Encontrei Joãozinho. Carregava uma pequena caixa de madeira às costas e, ao ver-me, dirigindo vagarosamente o veículo, perguntou-me:
-Vamos engraxar o sapato, tio?
-Não..., já é tarde!
-Tarde digo eu, tio, que ainda não vi hoje a cor do dinheiro e estou a menos de dez minutos de chegar em casa e levar uma boa surra de mamãe. Ou eu levo grana ou levo pau no lombo!
Aumentei a velocidade do carro, distanciei-me de onde estava, parei o automóvel numa pequenina praça florida, mas muito suja de papéis e garrafas plásticas. Avistei quatro velhos que rodeavam um tabuleiro surrado de jogo de damas.
-Boa tarde!
Todos responderam quase que ao mesmo tempo:
-Boa tarde, senhor. Quer jogar conosco?
-Não..., obrigado.
-O que quer então? perguntou-me o que me pareceu ser o mais velho deles.
-Nadinha!
-Então o senhor é da nossa escola. Nada faz.
-Como assim? Nada faz?
-É!...! Somos da turma dos aposentados. Ganhamos uma miséria do governo e distraímos a fome e o desencanto da ociosidade, jogando damas aqui na praça o dia todo. Não há boa biblioteca pra que possamos ler e mesmo que a tivéssemos, nosso salário não daria para pagar o ônibus extra que teríamos de pegar para ir até ela.
Angustiei-me, despedi-me de todos, liguei o carro e saí com mais pressa ainda. Não fui mais a lugar nenhum.
Os problemas sociais se avolumavam à minha frente e temi terminar num hospício. Quando cheguei ao meu apartamento encontrei a secretária chorando copiosamente. Indaguei-lhe:
-O que foi Zefa?
-O Oficial de Justiça!
-E daí, o que ele lhe falou de tão triste?
-Que era pra o senhor desocupar o apartamento até amanhã!
-Não ligue. Podemos beber à vontade, jogar damas, engraxar sapatos, amar e tudo mais. Hoje, durante todo o dia que passou, estive visitando a rua. Podemos dormir no carro quando a noite chegar. Confesso-lhe que o único lugar que encontrei pouco receptivo foi o cemitério. Não chore. Amanhã o dia será diferente de hoje. Nós só colhemos aquilo que plantamos. Vamos colher nossa safra com a vida. Amanhã, quem sabe, seremos mais dignos de viver num mesmo mundo onde passaremos à condição de seus inquilinos.