O verdadeiro amor não morre
Marta quando jovem namorou por muito tempo um jovem professor de matemática. Seu pai desgostoso por causa do namoro dela com o moço Guto, a levou as escondidas de Mucugê para estudar em Salvador, num colégio interno. Marta chorou copiosamente, pois além de amar muito o rapaz, amava também a sua cidade, tinha orgulho dela. Cidade que segundo sua família, em 1844, viveu o ápice do diamante. Lugar de clima ameno, sempre-vivas espalhadas pelo campo, casarões coloniais, aconchego, natureza abundante, felicidade!
Foram décadas sem saberem notícias um do outro. Guto, com o passar dos anos, acabou se interessando por Gabriela, moça rica, bonita, professora de História. Com ela, teve dois lindos filhos e vivia sossegado na pequena e também histórica cidade de Andaraí.
Marta, após concluir os estudos secundários, passou a morar numa linda casa de sobrado no corredor da Vitória, na capital do Estado. Entrou para a Faculdade de Direito, numa época em que os homens eram os privilegiados e, apesar da discriminação, conseguiu passar no concurso para promotora. Fugiu como pôde da sua terra natal ao tomar conhecimento do casamento de Guto com a Professora Gabriela. Sofreu muito, sentiu-se traída, abandonada. Mal sabia que seus pais receptaram as cartas que o rapaz mandava para ela durante todos aqueles anos. Além de responderem à todas pedindo para que Guto a esquecesse, pois amava outro moço da capital.
O casamento de Augusto a deixou doente. E por não se alimentar devidamente, acabou contraindo uma pneumonia. Ficou meses convalescendo, não tinha forças para lutar. Não conseguia perdoa-lo pelo fato ter não ido atrás dela em Salvador. Teria renunciado a tudo por ele e por causa disso, passou anos sofrendo, se sentindo abandonada, só e amargurada. O seu casamento com o Marcelo, também promotor, foi uma fuga, uma tentativa de ser feliz. Felicidade não podia mesmo sentir totalmente, embora Marcelo tenha sido um homem amoroso, compreensivo e dedicado à família. Marta sentia por ele, admiração, respeito, companheirismo. Dedicou os melhores anos da sua vida cuidando do trabalho e do marido. Não teve filhos.
Agora viúva, na solidão dos seus dias tentava reviver cada momento daquele intenso amor proibido na cidadezinha de Mucuge, no interior da Bahia. Lembrava dos encontros furtivos nas ruazinhas e praças, no campo e nas casas de amigos, na relva fresca e nos banhos de cachoeiras e rios durante o verão nas cidades da região da Chapada Diamantina.
Haviam sido cúmplices, amantes, confidentes, amigos. As cartas que guardou com cuidado do tempo de namoro, ainda jovens, comprovavam isso. Cartas essas, guardadas com esmero e, embora amarelecidas pelo tempo, foram lidas e relidas durante 48 anos de ausência. Uma delas, não foi respondida, a que Marta enviou para Guto, no início do ano de 1960 cuja cópia ela relia em suas horas de reflexão.
Marta, não conseguiu durante todos aqueles anos de separação, compreender o silêncio do seu amado. Jamais poderia imaginar a tamanha canalhice do seu pai em mandar para Augusto cartas de amor suas que ele mesmo escrevera, endereçadas a um pretendente em Salvador. Na carta, ela se referia ao Guto como uma simples aventura de juventude, um amor platônico sem maiores consequencias. O pai dela, um homem de posses, andava sempre acompanhado de jagunços por toda a região, era temido, pois, dele dependia muita gente. Gente essa que o senhor seu pai, explorava nas fazendas e na fábrica de café. Não teve escrúpulos em mandar atirar na perna direita de Guto, na calada da noite, forjar um álibi e culpar o namorado fantasma de Marta pela tentativa de homicídio. Guto não prestou queixa na polícia, entendeu o recado, e mudou-se para a cidade de Andaraí, fugindo da morte. Iria tentar esquecer definitivamente o grande amor de sua vida.
As lembranças perseguiram-no durante todo aquele tempo. E fez mil coisas para que sua boa esposa Gabriela não percebesse a dor e angústia do seu coração. E sem que ninguém se importasse, costumava no finalzinho da tarde, ligar o rádio e ficar ouvindo as músicas da Jovem Guarda agora tão em voga nos programas de rádio. Marta era a figura que aparecia na sua mente nesses momentos de saudosismo. Naqueles tempos, dançava com ela no único clube da cidade, o twist ao som da Música Estúpido Cupido e todas as músicas do rei Roberto Carlos e demais artistas da época. Ah, tempos bons aqueles! Ela, com seus vestidos rodados, saias volantes, perfume suave, mascando chiclete... Ele, altivo professor, apaixonado pela aluna, envolvido pela alegria dela. Muitas vezes, saia do seu ritmo normal de vida para correr ao seu lado pelos campos e veredas, rolar na grama, dormir e acordar molhado pela fina chuva, depois de uma noite de intenso amor.
Após a morte de seus pais, aposentada e sozinha, Marta resolveu retornar para sua terra natal, Mucuge. Não encontrou mais Guto por lá. Resolveu comprar uma fazenda para criar cavalos e descansar. Foi para Andaraí, cidade próxima. Esperava rever o seu amor, pois acreditava firmemente que o ciclo ainda não havia se fechado. Não depois de tudo que ficou sabendo através do velho motorista do seu pai. Andou bisbilhotando pela cidade sobre o paradeiro do velho professor de matemática. Conseguiu vê-lo numa exposição de peças artesanais, evento comum na região. Guto havia se tornado escultor e suas peças eram sucessos no Brasil e exterior, principalmente na Alemanha. Depois do tiro na perna, ficou com um pequeno defeito físico que o limitava. Aposentado, preferiu deixar definitivamente a profissão de professor. A sua esposa dirigia o colégio de sua propriedade e ele passou a se dedicar exclusivamente à arte. A sua mulher, Gabriela possuía bens móveis e imóveis, casas e dinheiro, herança de seus pais. Dessa forma, o casal vivia confortavelmente bem, fazia parte da elite da pequenina cidade do interior, Andaraí.
Marta ficou estupefata quando o viu. Os cabelos grisalhos davam-lhe um ar de sedução, e o sorriso aberto e espontâneo ainda revelava o quanto aquele homem era especial. Aproximou-se devagarzinho e com a voz trêmula, perguntou para Guto, quanto custava a estatueta, símbolo da deusa da fertilidade. Ele se virou rapidamente e os olhares se encontraram, mãos tímidas se tocaram rapidamente, encanto, magia, êxtase... Nesse momento, uma voz gritante ecoou pelo recinto - Papai, estão lhe chamando para uma entrevista, papai, papai! Guto paralisado, parecia não ouvir, seus olhos não paravam de fitar aquela mulher esguia, muito bonita ali na sua frente. Admirava o belo rosto maduro da sua amada. Não se mexeu, não conseguiu articular nenhuma palavra. Marta foi a primeira a se recompor e suavemente tocou-lhe os lábios com os dedos e dizendo-lhe baixinho num sussurro, - precisamos conversar. E saiu. O filho de Guto não entendeu o que havia acontecido com o pai e o sacudiu fortemente. Naquela noite Guto não dormiu. Sua mulher carinhosamente se aconchegou nos seus braços e ele fingiu dormir. Queria sonhar com ela, Marta, sua deusa. Sim, queria vê-la de novo e não a deixaria mais escapar. Perdoaria todos os erros do passado se preciso for, mas não mais passaria pelo calvário de perdê-la novamente.
Numa noite de lua cheia, após ter tomado todas as precauções, rumou em uma charrete, para a fazenda “Bela Vista”. Escondeu os cavalos e depois de subornar o rapaz que montava guarda numa guarita, seu conhecido, entrou pela ante-sala. Marta, deitada no sofá da sala, lia um livro. Os cabelos soltos e sedosos emolduravam seu rosto moreno e forte. Não o viu chegar e ele, bem devagarzinho ajoelhou-se ao seu lado e pôs-se a cantar a música que lembrava aos dois, o primeiro beijo roubado. Ela pulou do sofá, agitada, ofegante. Guto a segurou suavemente, deitou-a no tapete da sala e ali mesmo, com carinho e sem pressa a amou. Ela sem impor resistências deixou-se levar, afinal não foi esse o momento tão esperado durante todos esses anos?
Agora sentada na sua cadeira preferida, pensava nos encontros furtivos, na plenitude daquele amor tão corajoso e verdadeiro. Gabriela? Ah que continuasse a fazer o papel de esposa. Marta só queria mesmo era poder desfrutar do seu amante por toda a vida, mesmo às escondidas, na calada da noite... Que maravilha! Pensava ela adormecendo na esperança de um novo encontro.