QUERO SER CHAPEUZINHO VERMELHO

QUERO SER CHAPEUZINHO VERMELHO

Joelito Modesto era um homem muito criativo. Um artista, podemos assim dizer. Era um jovem de destaque na cidadezinha onde morávamos. Em 1967, ele ainda não havia concluído o curso de magistério, mas juntou-se a um grupo de colegas e resolveram fundar uma escola primária, a qual seria chamada Escola Modelo Joel Modesto. Viria com uma proposta totalmente nova: aulas normais pela manhã e um professor para cada matéria. À tarde, reforço escolar e aulas de artes e prática de esportes.

Como se tratava de uma escola privada, os alunos seriam naturalmente selecionados, uma vez que haveria o pagamento das mensalidades, e, naquela época, a única escola particular do município era o Colégio, mas esse não oferecia o curso primário.

Ainda assim, conseguiram um bom número de alunos e entre eles, estávamos nós, minha irmã e eu, para cursar a 3ª série do ensino primário.

Foi um tempo bom aquele. Realmente, era tudo diferente do que a gente tinha visto até então. As aulas eram dinâmicas e criativas. Passávamos ali a maior parte do dia lendo, pintando, fazendo trabalhos em cerâmica, programando aulas de socialização para apresentar nas datas festivas.

Foi naquele ano, participando das aulas de arte, que descobri a minha capacidade de liderança. Foi brincando de fazer teatro, dramas e comédias, que cresceu em mim a vontade de subir ao palco, de verdade, para representar e receber os aplausos da platéia. Então, espontaneamente assumi a frente das programações. Eu era uma espécie de diretora: escolhia ou criava os textos, decidia sobre os atores, personagens, cenário, tudo bem precário, é certo, mas o resultado geralmente era muito satisfatório.

Na minha classe, estudava uma menina de nome Regina. Não era a beleza em pessoa, mas era bonitinha e tinha boa aparência. Além do quê, era neta do mais importante chefe político do município, família considerada abastada e de destaque na sociedade. Essa garota tornou-se a minha inimiga número 1 naquela escola. Forçava a barra para tomar a minha liderança, zombava das minhas apresentações, caçoava de mim e conseguia levar a maioria dos colegas para o seu lado. Ora, o pai seria o próximo prefeito, quem iria querer ficar contra ela?

Brigas, xingamentos, puxões de cabelo! Volta e meia, o diretor ou outro professor corria para nos separar. Se jogávamos futebol, uma acertava a canela da outra! E esse renga-renga durou quase o ano todo.

Para encerrar o ano letivo, Zéu, o diretor, aquele mesmo do concurso de bonecas, resolveu fazer um festival de artes para ser apresentado pelos alunos no palco do Teatro da cidade. Eu, como sempre, andando para lá e para cá, nas providências, afinal era líder, ouvi quando falaram em encenar a história de Chapeuzinho Vermelho. Gente! Era tudo o que eu mais queria! Subir num palco de verdade, ver a platéia cheia, as luzes se apagarem...

Minha mãe sempre gostou de teatro e todas as vezes que o grupo de Teatro Amador da cidade encenava uma peça, lá estávamos nós. Levávamos a cadeira nas costas (não havia cadeiras no local) e chegávamos cedo para nos sentarmos na frente. Eu assistia ao espetáculo e me transportava para as personagens. Chorava e sorria...

Ninguém daquela escola tinha mais direito de ser Chapeuzinho Vermelho do que eu! Na minha cabeça, era lógico que a líder, aquela que criava os dramas, que ensaiava com os colegas, que “entendia” mais que todo mundo, fosse a personagem título do espetáculo. Mas aí, quem atrapalhou o meu estrelato? Regina! Quando a conversa da programação se espalhou, bateu o pé e disse que seria dela o papel principal. Foi a briga mais feia que tivemos! Não chegamos às agressões físicas, como das outras vezes, mas as discussões eram tão acirradas, que forçavam a formação de torcidas.

- Você é feia, horrorosa! Como pode querer ser Chapeuzinho Vermelho?

- E você é burra, não sabe representar nem decorar o papel!

Os professores ficaram divididos. De um lado, a aluna dedicada, com liderança natural, um certo talento para o teatro, mas, feia; do outro lado, a filha do futuro prefeito, neta do chefe político e menos feia que a outra. Então, como solução, resolveram instituir um teste entre as duas candidatas à atriz: teríamos que estudar o texto durante 10 dias. Ficaria com o papel aquela que houvesse decorado e tivesse o melhor desempenho no dia da prova.

Não! Era exatamente o que eu queria! Já podia contar como minha a parte principal da peça! Ri por dentro. Havia conseguido vencer aquela antipática! Sim, pois iria estudar dia e noite, iria ensaiar em frente ao espelho o tempo que fosse necessário, mas mostraria a todo mundo, principalmente a Zéu, que também era digna de aplausos.

E assim o fiz. Na minha santa ingenuidade, acreditava que havia chegado a minha vez. Já não tinha sido anjo, muito menos “boneca” no desfile, então, seria Chapeuzinho Vermelho!

- Professor, que dia vai ser o teste para a apresentação? Perguntei ansiosa.

- Ah, estava esquecendo de falar. Maria do Carmo e Regina, as duas estejam lá em casa hoje à noite, às 8 horas para o teste, certo? Só às 8 horas!

As horas não passavam. Nunca vi uma tarde tão comprida como aquela! Quando, finalmente, a noite chegou, tomei café às pressas e saí, sem ao menos avisar à minha mãe onde estava indo. Cheguei cedo, lá pela sete horas. A porta estava aberta e fui entrando. Atravessei a sala de entrada da casa, quando ouvi vozes. Falavam o meu nome. Me aproximei devagarzinho e espiei pelo canto da porta. E lá estavam, Zéu, algumas professoras, outras pessoas que não me lembro bem quem eram, provavelmente seus familiares, e o pior, Regina também já estava lá, e justamente experimentando a capinha de seda do Chapeuzinho Vermelho! Não quis acreditar. Já ia adentrar à sala quando ouvi uma das professoras dizer: “Não, Zéu! Não podemos deixar que Maria do Carmo faça esse papel! Já pensou como seria? Chapeuzinho Vermelho é uma menina bonita, que faz parte do sonho das crianças, como vamos deixar que aquela menina toda feia faça o papel principal?”

Não ouvi mais nada. A minha cabeça começou a rodar, senti as vistas escurecerem e as minhas pernas tremiam que nem vara verde! Eu não queria acreditar no que estava vendo e ouvindo! Dei a volta no corpo e saí caladinha para não ser vista.

No caminho de volta, senti um nó na garganta, mas decidi que não iria chorar! Começou, assim, a brotar em mim, o sentimento de vingança! As idéias surgiam em borbotões, uma atropelando as outras e eu confusa, sem saber ainda o que fazer, mas tinha certeza de que dessa vez, seria diferente.

Não comentei nada em casa sobre o acontecido, mas também, ninguém nada perguntou. No dia seguinte, quando cheguei à sala de aula, fingi que não sabia de nada. Lá pelo 3º horário, o professor Zéu me perguntou:

- Maria do Carmo, por que não foi fazer o teste ontem, lá em casa? Esperamos e como não apareceu, perdeu o papel. Vou arranjar outra coisa para você fazer.

A vontade que eu tive foi de pular naquele pescoço e torcê-lo até a morte! Como alguém podia ser tão cínico assim? Mas, tudo bem, Cau, calma. Não vá pôr tudo a perder, logo agora. Foi o conselho que dei a mim mesma.

Os preparativos para o Grande Festival estavam de vento em popa! Nas aulas de arte, à tarde, pintávamos máscaras, confeccionávamos roupas, ensaios e mais ensaios, e eu ainda não havia achado um jeito de estar presente no palco, naquele dia, para assim poder entrar em ação e estragar a festa.

Mauro era um negro muito bonito, cujo sorriso parecia feito de algodão! Sobrou para ele, no festival, o papel de um sorveteiro todo vestido de branco que saía empurrando o carrinho pelo palco e gritando: “Olha o sorvete! Tem de coco, creme e maracujá! Quem vai querer?” E ao fundo, uma voz bonita que cantava aos acordes de um violão:

Olha, o Benedito

Mas vejam só como ele está bonito!

Vai vender sorvete

De coco e creme e de maracujá!

Vem, ó criançada.

Que o Benedito já está na rua

Preto da cor da noite

Ó Benedito,

Alma da cor da lua!

Sorvete!

Para essa apresentação, faltavam as crianças que iriam subir ao palco e correr atrás do sorveteiro gritando: “Eu quero um! Me dá um!”. Agora, imaginem o que sobrou para mim? Isso mesmo. Não houve uma criança sequer que topasse fazer esse “glorioso” papel. Mas eu topei. Eu disse que queria e que faria o melhor que pudesse! E fiz questão de ir aos ensaios todos os dias. A intenção era fiscalizar Chapeuzinho Vermelho. Era ver como Regina estava se saindo como estrela da história. E cada vez que ela ensaiava, mais feliz eu ficava, pois percebia que estava tudo errado: não sabia o texto de cor, entrava na hora errada, a entonação era péssima...

- Vamos, está na hora! Mauro, está pronto? Cadê o carrinho, já está no palco? Maria do Carmo, espere a hora para entrar! Pronto, pode começar a cantar. Abram as cortinas! – e a movimentação era grande no camarim.

Fui lá, fiz meu papel direitinho, falei bem alto: “Eu quero sorvete! Me dá um!” Ouvia as risadas dos expectadores e sentia como se estivessem debochado de mim: “de papel principal à compradora de sorvete... há...ha...ha!”

Chegou a hora esperada. Para dar cumprimento ao meu plano, logo dei um jeito de esconder-me entre os bastidores, no palco. Fiquei ali, quietinha, com as mãos suando e o coração batendo apressadamente, enquanto arrumavam o cenário.

Abrem-se as cortinas. Surge a mãe de Chapeuzinho com uma cesta de doces. - Chapeuzinho! Chapeuzinhooo! Venha aqui, minha filha.

- Já vou, mamãe!

E a peça começou a acontecer. Para minha alegria, Regina começou a gaguejar, a esquecer as falas, e, nessa hora, eu, a Chapeuzinho Vermelho dos bastidores, levantava a voz e dizia:

- Tá errado, burra! É assim, ó! - Desculpe, Seu Lobo, mas eu não devo falar com estranhos...

Foi uma confusão naquele palco! As vozes se misturavam, as pessoas lá embaixo não estavam entendo nada, tentaram me tirar dos bastidores e conseguiram, mas só depois que disse quase todas as falas da personagem.

Pronto, estava feito. Tudo havia saído como planejara, todavia, eu não estava feliz. A sensação que eu tinha era de ter feito algo ruim, maléfico, sei lá! Acho que era a minha consciência, que costumo chamar de “a voz de Deus”, me reclamando, dizendo insistentemente o quanto idiota tinha sido a minha atitude. Que a maldade só atinge mais a quem a pratica, que a vingança não compensa, enfim...

Voltei para casa triste, meio que decepcionada comigo mesma. Perdi o sono, fiquei rolando a noite toda na cama, até que resolvi ter uma conversa séria com meu Deus:

- Senhor, tira do meu peito este sentimento de culpa. Arranca também a revolta que sinto toda vez que eu perco ou deixo de ganhar algo, simplesmente porque os outros me julgam e me condenam pela aparência. De hoje em diante, quero mostrar ao mundo quem eu sou! E nunca, nunca mais deixarei que alguém tenha sobre mim o poder de despertar esse horrível sentimento de vingança. Perdoa, meu Deus, a confusão que fiz hoje e não permita que eu volte a cometer os mesmos erros. Mas, também, Senhor, não consinta que eu seja boba a ponto de aceitar que pisem em mim! Ah, isso, não! Sabe aquele ditado? “Quem muito abaixa, mostra a...?” E adormeci.