DESFILE DE BONECAS
DESFILE DE BONECAS
Maria do Carmo Mattos Dantas Santos
- Margarida, tem uma filha de Dantas estudando aqui contigo, não tem? Eu gostaria de vê-la.
Opa! Filha de Dantas? Sou eu! O que será que esse homem quer comigo?
Estávamos na Escolinha Casinha Feliz, na verdade, o Jardim de Infância, onde aprendemos os primeiros passos rumo à escolaridade. Margarida era a professora e proprietária. “Tia Margarida”, era assim que nós a tratávamos e até hoje, depois de muitos anos, para mim e para muitos, ela é a Tia, aquela pessoa carinhosa, e alegre, que tornava as nossas manhãs sempre festivas e produtivas.
Pois bem, naquele dia, haviam tocado a sineta para o recreio e as crianças saíram para o quintal, que servia de pátio, a fim de merendar e brincar. Eu sempre fui muito curiosa e naqueles momentos, aproveitava que a sala estava vazia e corria a brincar com os bonecos fantoches da casinha feliz. Ali eu inventava as histórias e brincava com as personagens. Acho que vem daí o meu gosto pelo teatro.
Estava envolvida naquela tarefa, mas quando ouvi dizer – a filha de Dantas – pensei: sou eu! O que será que ele quer comigo?
Fiquei escutando a conversa.
- Olha, Margarida, vai ser uma festa muito bonita. Serão dez crianças a participarem, todas vestidas de boneca e no final uma delas será eleita a Boneca do Ano. O nome da sua filha já está na lista. Agora preciso ver a menina de Dantas, me disseram que ela serve para concorrer.
Participar de um desfile? Eu? Oba! Saí imediatamente de trás da Casinha e me apresentei toda feliz:
- Olha eu aqui! Eu sou filha de Dantas!
Ele olhou para mim com um ar de espanto e disse:
- Não é você não, menina! É a sua irmã! Você é muito feia! Margarida, cadê a outra, a branquinha? Ela também estuda aqui, não?
Pisa! Humilha! Nenhum dos dois, naquele instante, teve a mínima sensibilidade para perceber o mal que estavam fazendo a uma criança inocente de apenas 7 anos de idade. Fiquei ali, parada, com vontade de chorar e com vergonha, sentindo-me culpada por não ser a criança da qual eles falavam. Sem se darem conta do quanto eu havia sido atingida por aquelas palavras, saíram, os dois para o pátio à procura da minha irmã. E eu, sentei-me num cantinho da sala, como para me esconder do mundo, e chorei. Lágrimas de dor e de raiva. Por que minha irmã e não eu? Até aquela hora, jamais havia passado pela minha cabeça que eu fosse uma criança feia. Que a minha irmã, que era mais velha que eu somente um ano, fosse mais bonita e por isso, a preferida.
Voltei para casa triste, mas nem ali perceberam o meu estado de espírito. Lurdinha, essa chegou toda alegre, contando que ia desfilar e já ensaiando como iria fazer quando subisse na passarela.
Os dias foram passando e o burburinho sobre o tão esperado desfile de bonecas foi aumentando. Tínhamos uma vizinha chamada Socorro, que também iria participar, e então, quando as mães se juntavam para planejar as roupas das filhas, como seria o chapéu, essas coisas, a vontade que eu tinha era de gritar! De sair rasgando aqueles vestidos lindos, rodados, enfeitados de renda!
Meu pai, sapateiro de mão cheia, se prontificou a fazer todas as sapatilhas. Às vezes, eu apanhava um par, às escondidas, e ia para o canto da oficina experimentá-la. E sonhava... Sonhava vestida de vermelho, parecendo uma fada! Mas esses eram breves momentos, pois logo ouvia Zéu - o organizador - dizendo: “você é feia! Você não serve!”.
Finalmente, chegou o dia! As “bonecas” iam desfilar e mostrar a sua beleza. Era um entra-e-sai lá em casa e na casa da vizinha, que só vendo!
- Venha, Lurdinha, a moça já chegou para fazer os papelotes! Venha logo arrumar o cabelo!
- Olha querida, quando estiver desfilando não se esqueça de sorrir para o povo. Ah, jogue beijinhos também, tá?
E eu ali, vendo toda aquela movimentação, reparando melhor na minha irmã e reconhecendo que realmente ela era muito bonita!
Á noite, lá pelas sete horas, entramos no carro e fomos todos rumo à Rua do Fogo, local onde iria acontecer a festa. Quando chegamos, já havia muita gente se acotovelando para assistir ao evento. Cidade pequena, interior da Bahia, qualquer acontecimento era novidade! Gambiarras foram colocadas para iluminar melhor a festa e uma passarela, feita com mesinhas da escola, toda coberta e ornamentada com flores aguardava as garotas. Ouviam-se músicas pelo alto-falante instalado num poste da rua. A curiosidade era enorme, afinal, este seria o primeiro concurso de beleza infantil de muitos outros que viriam a acontecer nos anos seguintes.
Deu-se início ao desfile. O público vibrava e torcia a cada apresentação das meninas enfeitadas. Quando Lurdinha pisou na passarela, senti um misto de inveja e orgulho. Inveja, porque eu gostaria de estar ali, também, sendo aplaudida, e orgulho por saber que tinha uma irmã linda, era assim que eu a via, a mais faceira de todas!
Não, ela não foi eleita a Boneca do Ano, mas brilhou. Sorriu, jogou beijinhos, fez trejeitos engraçados arrancando gargalhadas da platéia e, o mais importante, teve a sua auto estima elevada. Recebeu como prêmio pela participação uma boneca de plástico.
Voltamos para casa e foi aquela alegria. Mais tarde, quando todos estavam dormindo, levantei-me, pé-ante-pé, vesti a roupa de boneca que estava jogada em cima da cadeira, calcei as sapatilhas, apanhei a lamparina que estava acesa no quarto, fui para a sala e comecei a desfilar e a rodopiar, sentindo-me flutuar!
Aquele dia, à meia noite, a gata borralheira virou Cinderela. Desfilei, joguei beijinhos, fiz trejeitos e sorri para a única platéia que estava ali para me assistir: Deus!