ANJO? NUNCA MAIS!
ANJO? NUNCA MAIS!
Maria do Carmo M. Dantas Santos
- Cau! Maria do Carmo! Onde você está, menina? Já passou da hora de tomar banho, venha logo para casa!
Eu, garota de oito anos, feia, desengonçada, estava ali, num canto da sala da casa de Tia Maridete, escondidinha em cima de uma cadeira, vestida de anjo, sim, de anjo: roupa de seda vermelha, asas de arame e algodão e uma coroa na cabeça. Coroa? Não era uma auréola? Não, me lembro bem, era coroa mesmo. Mãos postas há mais de uma hora, esperando que me mandassem sair daquela posição (sentia-me como se estivesse de castigo) e ouvindo os gritos da minha mãe.
Na rua onde eu morava, numa cidadezinha do interior, havia uma solteirona chamada Deográcia, gente muito boa, dona do melhor armarinho da cidade (aliás, acho que era o único) e beata assumida, dessas que vão quase todos os dias à Igreja, que sabem cantar qualquer hino, conhecem todos os rituais e a reza para cada dia da semana.. Pois bem, Deográcia era devota de Nossa Senhora e ano após ano, ela fazia uma novena para a Santa.
A casa em que morava com a mãe e mais dois irmãos solteirões, ficava na mesma fileira que a minha e era bastante ampla, dessas casas antigas, com quintal grande, cheio de fruteiras. E era na sala que ela armava o altar, todo enfeitado de flores e velas, com a imagem da Santa ao centro. Eu achava aquele altar a coisa mais linda do mundo! Mais bonito até, que o da Igreja Matriz. E quando, à noite, lá pelas 19 horas, acendiam as velas e distribuíam as meninas vestidas de anjos, todas maravilhosas, cada uma no seu lugar, ficava emocionada e imaginando-me ali também, sobre um banquinho coberto de tecido branco, mãos postas, rezando as ave-marias. Como sonhava com este momento! Desejava ardentemente fazer parte daquele grupo, mas, acreditem, jamais me deixaram ser anjo!
Todo ano, era a mesma coisa. Quando se aproximava o mês da novena, lá ia eu, falar com Deográcia, dar o meu nome para integrar o grupo dos anjos. E ouvia sempre a mesma resposta: “ah, minha filha, não tem mais vaga, já está completo, fica pro ano que vem”. E mais uma vez, eu saía chorando, sabendo que não era verdade. Que ainda estava convidando garotas, inclusive a minha irmã, Lurdinha, mais velha um ano. Mas Lurdinha era branquinha, bonita, tinha mesmo um ar angelical. E eu? Ora, não vou negar, de beleza não tinha nada! Sempre fui feínha e por isso mesmo, discriminada na infância. Na escola, na rua onde morava... Bem, as fotos não mentem! Hoje, quando as vejo, percebo que o tempo foi generoso comigo. Não sou nenhuma beldade, nem mesmo bonita consegui tornar-me, mas, podemos dizer que fiquei menos desengonçada. e, para compensar, desde que me dei conta do quanto sofreria com a rejeição dos outros, procurei tornar-me simpática, agradável, letrada, enfim, tenho buscado, ao longo da minha existência, enriquecer os meus sentimentos, deixá-los transbordar para que vejam a pessoa, o ser humano que há em mim, por trás da aparência. Quantos enganos têm-se cometido por causa da bendita aparência!
Certo dia voltava eu chorando da casa de Tia Grace - até de tia comecei a chamar a coroa Deográcia , a fim de que ela me aceitasse na sua novena - após ter ouvido as mesmas desculpas, quando deparei-me com Regina. Essa já era uma mocinha, devia ter ali pelos 12 anos de idade, baixinha, cabelos pretos e longos, sobrinha da “Tia Grace” e morava vizinha à minha casa.
- Por que cê tá chorando, Cau? Andou brigando com alguém? (eu era muito briguenta!).
- Eu pensei que esse ano Tia Grace fosse deixar eu ser anjo. Ela tinha prometido!
- Mas que besteira! Ser anjo não é tão bom assim. Dá uma canseira... Aquelas asas com arame machucam as costas. Eu é que não quero.
- Não acredito que seja ruim. Eu acho tão lindo! Mas ninguém me deixa ser, só porque sou feia.
Ante esta minha determinação e vendo que não conseguiria me convencer do contrário, ela olhou-me séria, baixou a voz e me disse:
- Quer mesmo ser anjo? Então eu vou te ajudar. Fique aqui que vou lá na casa de Vovó Donana ( mãe de Tia Grace) apanhar as roupas para você vestir. Mas não diga nada a ninguém!
Fiquei ali, parada na porta da sua casa, com o coração querendo saltar do peito, ansiosa para realizar o meu sonho. O tempo parecia não passar e a cada segundo eu temia que não desse certo, que a nossa peraltice fosse descoberta. Mas, para a minha alegria, a minha amiga retornou trazendo dentro de uma fronha, provavelmente surrupiada da avó, todos os apetrechos que iriam me fazer a mais angelical das criaturas. Convidou-me a segui-la até a sala da sua casa. Era uma casa antiga. A sala tinha uma janela que dava para o quintal, de onde se avistava o pé de goiaba todo carregado de frutos maduros, os quais muitas vezes eram o objeto de desejo da criançada da rua. Conduziu-me a um cantinho, atrás da porta, forrou uma cadeira com um pano branco, vestiu-me a indumentária e mandou que eu subisse e colocasse as mãos juntas, numa atitude de oração. Ordenou que eu rezasse várias vezes, para cada Pai Nosso, dez Ave Marias.
Confesso que fiquei um tanto decepcionada, pois ali ninguém iria me ver. Então, de que adiantaria usar aquelas asas desconfortáveis, aquela coroa despencando da minha cabeça a qualquer gesto que fazia e aquele tanto de reza, se não havia pessoas para apreciar? Ora, Cau - pensava eu - daqui a pouco vai aparecer alguém que vai te admirar tanto que irá indicá-la para a próxima novena. Ledo engano. Regina saiu da sala dizendo que logo voltaria e esqueceu-se da promessa. E ali estava eu, toda doída, há mais de uma hora em pé, os ombros pesando pra caramba com aquelas asas mal feitas, a bexiga a ponto de explodir de tão cheia, as pernas já adormecendo e ouvindo os gritos da minha mãe: - Cau, venha logo para casa! Ah se eu te pego! Ta na hora do banho!
A noite foi chegando e eu já não agüentava mais. Sabia que receberia puxões de orelhas da minha mãe (se havia uma coisa que ela não admitia era que os filhos passassem da hora de tomar o banho). Já ameaçava descer, quando de repente aparece a Tia Maridete, mãe de Regina, mulher de fibra, excelente costureira, a quem eu carinhosamente chamava de tia pelo grande afeto que nutria por ela e pelo carinho que recebia. Olhou-me espantada e depois caiu na risada:
- Cau, o que faz aí, vestida desse jeito?
- Ah, Tia, Regina me vestiu de anjo, mandou que eu rezasse e que ficasse aqui esperando ela voltar. Mas parece que ela esqueceu...
- Tire essa roupa já e vá para casa. Não está ouvindo sua mãe chamar? Depressa! Deixe que eu guardo as roupas. Vá!
Lá em casa, éramos em sete irmãos, três homens e quatro mulheres. Eu sou a terceira. Meu pai, naquela época era sapateiro, fabricava sapatos sob encomenda para os moradores da cidade e exportava os melhores pares para Salvador, e a minha mãe, era dona de cartório. Tabeliã de Notas. Então, com esse grande número de filhos, tendo ainda que trabalhar e cuidar da casa, havia estabelecido essa regra: à tardinha, haveria a fila para o banho, de forma que, ao anoitecer, todos estivessem lavados e vestidos para a refeição, na qual geralmente eram servidos cuscuz, batata cozida, pão e café com leite. Vez por outra, havia bolo, beijuzinho de tapioca feito na caçarola, e até uma farofinha de ovo.
Saí correndo para casa, entrei pelos fundos, atravessando a cerca de arame que dividia os quintais (ainda não havia muros), tomei o banho rapidamente e quando a minha mãe se deu conta, eu já estava no quarto, folheando a cartilha da escola para disfarçar. Daquela vez, não levei puxões de orelhas.
Os anos foram passando e eu tornei-me uma pré-adolescente arredia, “tirada a macho”, como diziam na rua. Gostava de jogar bola, bolinhas de gude, brincar de polícia e ladrão, andar de bicicleta... Acho que por não ser bem aceita nas rodas das meninas, que se enfeitavam, brincavam de adultas, ora já eram moças e desfilavam, ora já eram mães, com os seus filhos no colo (bonecos feitos de pano). Decididamente, não conseguia me inserir naquelas fantasias.
Quando adolescente, comecei a cantar no coral da Igreja, o Orfeão Carlos Gomes, regido pela queridíssima professora Judith Arlego. Abrilhantávamos as missas festivas e, naquelas ocasiões, éramos o destaque da festa. Pois bem, foi ao participar dessas apresentações que a minha frustração por não ter sido anjo de verdade nas novenas da Tia Grace voltou a me machucar!
O coral, usando uma capinha vermelha com gola branca, todo compenetrado, adentrava a igreja e se posicionava, algumas vezes, lá na frente, próximo ao altar, outras, no coro e ficava aguardando a entrada dos Imperadores ou encarregados da festa, que vinham trazendo a bandeira, acompanhados pela banda de música, a Minerva, e por um número de anjinhos, lindos! Auréolas de flores, sandálias havaianas com as tiras cobertas de seda, combinando com a roupa e ares angelicais! Meu Deus! Ao entoarmos o cântico de entrada, sentia um aperto tão grande no peito e as lágrimas inundavam os meus olhos. Chorava e cantava! As colegas que testemunhavam as minhas lágrimas comentavam entre si: ”como Cau é emotiva! Já perceberam que ela se emociona toda vez que a gente canta?”.
E naqueles instantes, eu orava e pedia a Deus que um dia me desse uma filha. E que essa filha fosse bonita! Que não fosse discriminada por ter traços irregulares e que, estivesse à altura de quaisquer anjos que adentravam aquela igreja! Parece bobagem, não é? Mas, só quem já sofreu a rejeição é quem pode avaliar a cicatriz enorme que se carrega na alma e que, ocasionalmente ameaça sangrar.
Cantei no coral durante muitos anos. Mesmo depois, continuei a freqüentar a igreja regularmente (era católica praticante) e a chorar, agora não mais como antes, pois havia aprendido a disfarçar, mas lá no íntimo, sentia as lágrimas brotarem e o mesmo aperto no coração. Contudo, fazia questão de sentar-me bem na frente, para ver melhor a entrada do cortejo e os anjinhos, agora cada vez menores e mais jovens.
Casei-me aos 29 anos de idade. O Pai do Céu providenciou para mim um marido que além de ser uma pessoa de bom caráter, bonito! Alto, corpo atlético, sorriso colgate! Tudo que eu queria e precisava! Após um ano de casados, engravidei. Aí, começou a torcida. Queria que fosse mulher e quando tivemos a confirmação do sexo da criança, pensei: “Deus ouviu as minhas preces! Ele vai me dar uma filha e ela vai ser a cara do pai”. Como o pai era bonito e geralmente as filhas ”saem ao pai”, então, teria o meu sonho realizado!
Nasce Amannda, nossa filha querida. Digna de ser amada, esse é o significado do seu nome. Nasceu feia, nariz esparramado, Aí pensei: será que vai ficar com essa cara de “Severina Xique-Xique” quando crescer?
Quando Amannda tinha três aninhos, já era uma garota bonita: olhos amendoados cor de mel, cabelos longos, negros e brilhantes, boca bem feita e nariz afilado. Ah, para afilar o nariz da menina, eu esquentava os dedos, indicador e polegar na chama da vela e apertava as narinas da coitada, massageando-as levemente. Acho que funcionou, pois hoje, quem a vê, elogia a sua beleza.
Aproximava-se a festa da Padroeira da cidade. Sílvia e seu esposo, amigos nossos, seriam os encarregados. A sopa no mel! Ela, sabendo do meu trauma, mandou-me um recado: Amannda seria anjo e que eu pudesse me alegrar, pois o meu sonho seria realizado. Vibrei de alegria. Imediatamente chamei a minha filha, coloquei-a no colo e comecei a falar:
- Mandika, lembra daquelas menininhas bonitinhas que a gente viu na Igreja, todas vestidinhas de Anjo? Aquelas com as asinhas brancas... Tá lembrada?
- Tô.
- Pois então, minha querida, Tia Sílvia vai fazer a festa da Igreja e mandou convidar você para participar! Você vai ficar linda com aquela roupinha brilhante, vai tirar retrato...
- Não! Eu não quero ser anjo!! Não quero!
Ai, meu Deus! Não é possível! Ela não quer! Fiquei chocada. Ela haveria de querer. Naquele instante, fiz um jogo baixo, confesso. Usei um argumento infalível: “Se você aceitar, mamãe vai te dar uma caixa de chocolate, daqueles bem gostosos!” Que horror! Uma mãe subornando a própria filha! A que ponto cheguei! Pensei: bom, mas é tudo por uma boa causa. Quando falei do chocolate, ela ainda ficou meio confusa..., por fim, disse que ia pensar. Mas aí eu já sabia que a minha Amannda iria entrar na Igreja, naquele cortejo que eu tanto admirava e que eu estaria lá, com o peito cheio de orgulho e dessa vez, as lágrimas que rolariam, seriam de alegria.
Tomei todas as providências. Mandei fazer uma roupa nova para o meu anjo (a que me mandaram era usada), comprei a sandália e eu mesma enrolei as tirinhas com a fita cor de rosa, mandei fazer a auréola toda de flores e aguardei, ansiosamente, o dia D.
A missa festiva geralmente começa às dez horas da manhã. Todos que iriam participar do cortejo deveriam estar na casa dos imperadores logo cedo para se aprontarem. Assim, levei Amannda e a deixei junto com as outras meninas. Meu marido, nesse dia, precisou se ausentar por motivo de trabalho e não pôde participar do desfecho desta história.
Voltei para casa e fui me vestir as pressas. Não podia chegar atrasada. Já não cantava mais no Coral, contudo, chegando cedo, haveria de achar um lugar logo na frente! Tocam a campainha de casa. Saio para atender e me deparo com uma amiga em prantos que estava precisando desabafar os seus problemas familiares. E agora? O que fazer? Juro que pensei em pedir que ela voltasse noutra hora, mas foi só por um segundo. Compreendi que se alguém me procurava naquela situação, era porque Deus tinha um propósito. Sentamo-nos e ouvi todo o seu desabafo, orando para que encontrasse palavras que a ajudassem a se acalmar e a enxergar melhor o que estava acontecendo. Enfim, após havermos conversado, ela notou que eu estava de saída e se despediu, prometendo voltar depois para avaliarmos toda a situação.
Liguei o carro e saí em disparada, rumo à Igreja. A entrada magistral eu não veria mais, porém, ainda daria tempo de vê-la ao pé do altar. Entrei forçando a passagem e, para minha surpresa, avisto a minha menina chorando com a roupa toda molhada: havia feito xixi ali mesmo. Quando me viu, abriu os bracinhos e correu na minha direção, dizendo:
- Minha mãe, é ruim ser anjo! Eu não quero mais. Tá doendo aqui... - e apontava para o ombro.
- Meu pé ta dodói! Eu to com sede. Quero ir pra casa.
Levei-a à sacristia, dei-lhe água para beber e desamarrei o barbante que prendia as asas ao seu corpo. Fiquei estarrecida! Havia vincos na sua pele. Ela estava chorando de dor. Alguém havia apertado demais a fita, o barbante, sei lá, e ali estava o resultado.
Naquele momento, caiu a ficha. Juro, só ali, vendo a minha filhinha chorando de dor, com sede, toda urinada, é que me dei conta do quanto havia sido inconseqüente! E compreendi, finalmente, que os nossos sonhos são somente nossos. Que os filhos não têm débito nenhum com os pais, para se verem obrigados a realizar aquilo que eles desejaram fazer e não puderam.
Deus tinha um propósito na minha vida, quando enviou aquela mulher a minha casa, justamente naquela hora. Eu teria que chegar atrasada para encontrar Amannda nas condições que encontrei e, graças a Ele, deixar cair por terra a mágoa e a frustração que, até então, eram um espinho no meu coração. Liberdade! Alívio! Superação! Anjo? O quê?! Anjo nunca mais!