SAMPAFERA

SAMPAFERA

O ônibus estacionou na plataforma dezessete do Terminal Rodoviário do Tietê, o ar comprimido dos freios assoviou forte e o roncar do motor parecia estrebuchar até parar por completo. Àquela hora do dia a estação fervilhava de passageiros embarcando e desembarcando indo e vindo de todos os cantos, gente que não acabava mais. É assim em todo feriado prolongado. Nesse ano um dos feriados caíra na quinta-feira e o outro na segunda-feira, a sexta-feira foi emendada, não sei se por lei ou por conta própria, o fato é que cinco dias deram à oportunidade e a desculpa para Sandoval conhecer a tão falada e até temida cidade de São Paulo.

Nascido em Floreal no noroeste do estado, o mais longe que chegara em viagens fora Nhandeara, distante poucos quilômetros de seu local de origem. Sonhava com cidade grande, não dessas mais ou menos. São Paulo de quem ouvira histórias impressionantes de grandeza e aventuras povoavam os seus mais ardentes desejos. A distante metrópole atiçou por anos seus anseios. Surgia em seus devaneios como uma dama de estonteante beleza que girando sensualmente à sua volta o envolvia num bailado alucinante. Consumindo corpo e alma transformava-se subitamente em medonha fera que em total êxtase devorava-o de um só bote.

Na cidadezinha pacata, Sandoval passou sua infância e adolescência, envolto em sonhos e traquinagens inocentes, próprias da idade e da localidade. Gastava seus dias em banhos no rio, jogos de bola, alguns trabalhos no sítio do pai, missas e quermesses da paróquia, namoricos e aulas encantadas da Professora Vera Alice, seu primeiro e secretíssimo amor. Jamais teve coragem de comentar seja com quem fosse esse seu sentimento, talvez por timidez ou quem sabe por medo do senhor Nenico marido e fiel escudeiro da amável e cobiçada mestra. Mas por São Paulo era amor descarado, propagado, daqueles que não dá para negar.

Sandoval desembarcou. Nunca vira tanto movimento, nem nas quermesses de Padre Eustáquio havia esse mundaréu de povo. Aos esbarrões e empurrões viu-se fora da plataforma seguindo o fluxo de pessoas em direção ao Metrô. Empacou na catraca. Desorientado, sem saber o que fazer preparava-se para pular, não deu tempo, alguém colocou um bilhete e de um só tranco passaram os dois. Pior, sem dar um passo sequer foi enfiado no vagão apinhado que partia alucinado no sentido Jabaquara. Foi literalmente despejado na Sé. A bagagem... Seguiu viagem.

Quando a fome começou a bulir com o estômago, Sandoval estava a quilômetros da estação. Caminhara por horas encantado com as luzes, as cores, os edifícios, as vitrines, o trânsito... Estava embriagado nos braços de sua amada, totalmente seduzido. Entrou no bar e pediu um pão com...

- O que tem?

- Solta um x-salada... Berrou o balconista transpirando em bicas e sem dar qualquer atenção à dúvida do visitante – Vai beber o que?

- Quero...

- Com gelo ou sem?

- Como?

- Solta um guaraná gelado. Voltou a gritar o balconista que partia para o próximo freguês.

Com algumas moedas que ficaram no bolso das calças, pagou a única refeição do dia. Não precisava mais, seu espírito estava satisfeito e a alma repleta. O velho desejo era agora realidade. Como era bela a musa de seus mais ardentes sonhos, Sandoval perambulava inebriado entre ruas e praça. Misturou-se aos pivetes, moradores de rua, travestis e damas da noite. Nunca vira moças mais lindas, nem a Professora Vera Alice cheirava tão gostoso quando andando pela sala de aula passava ao seu lado parecendo envolta em braçadas de flores do campo.

Recostado ao banco da praça nosso apaixonado viajante adormeceu acompanhando as luzes dos carros que passavam pela avenida e as pernas das meninas que desfilavam à caça de trabalho.

Madrugada alta, o policial cassetete em punho, exigia os documentos. Ainda sonolento, sem entender o que acontecia, levou uma estalada bofetada que lhe fez zumbir o ouvido. Foi jogado no “camburão” e gentilmente hospedado por três dias no xilindró de um distrito policial. Compartilhavam da mesma “suíte” um bêbado, um viciado em drogas e dois travestis que por sinal, se desmanchavam em favores na intenção de agradar o iniciante na vida da carceragem.

Terça-feira. Após um esbregue bem dado pelo delegado todos os hóspedes foram liberados. Um dos travestis, condoído com a situação do novo companheiro, emprestou dinheiro para que Sandoval pudesse retornar à sua distante Floreal, com a promessa de voltar rápido para visitar seus novos amigos.

O motorista aprumou-se no banco, conferiu o horário no relógio de pulso, girou a chave ligando o motor do ônibus e engatou a marcha... Antes que o veículo entrasse em movimento, Sandoval saltou pela janela qual um gato em chapa quente, correu pela multidão apinhada na plataforma e nunca mais foi visto. A grande dama de seus sonhos de infância o havia devorado por completo.

Claudio De Almeida
Enviado por Claudio De Almeida em 10/06/2008
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