CORTINA RASGADA

Mario saía da fábrica às dezoito horas. Como era horário de verão, ainda era dia claro.Com a calça jeans suja da lide, a camisa ao qual trocara – na hora da saída pelo jaleco que enfiara na mochila – aos poucos ia encardindo pelas mãos ainda sujas.E havia o trem que sacolejava cheio e borbulhante como detergente dentro da água.E ele, pardavasco, miúdo e fortinho, escorava-se na porta do trem mesmo; e nem o sacolejo continuo nem tampouco o borbulhar confuso de vozes o distraia do seu sagrado cochilo de cansaço mesmo.E enquanto fechava os olhos via-se em casa, e ao logo os abria: nem se surpreendia!

Agarrava-se a mochila com o encabulado medo que a marmita fosse chacoalhar. Ainda assim, se alguém se importasse, como dar atento a ouvir isto com tamanha algazarra dentro do comboio.

Todo subúrbio varria-se em um flash aos que estavam ao trem, e tudo se perdia como tudo era mesmo tão habitual e familiar.

E de repente estava-se assim numa estação onde o verde se apresentava em morros fechados e o ar era frio ou tão banalmente úmido como de um brejo.

E era a rua de sempre, de todo dia que Mario tomava tão familiarmente nos passos com aqueles tênis já gastos. Ruas de areia, mal iluminadas; com um poste de madeira aqui ou acolá, em uma fraca luz azulada.E tudo já era escuro; os matos, ao seu lado, cantavam pelo intermédio dos grilos.

Mario sorria sozinho no escuro a caminho de casa, satisfeito com o próprio cansaço. E olhando uma casa ou outra, antes de chegar a sua, mal iluminada e úmida, pensava na sua, na sua mãe...e muito tão logo naquela namorada.

Ah, aquela moça que se pinta tão sem charme, usa perfume com cheiro de flor fenecida, e no botequim à beira da estação – onde ele freqüenta – sempre pede forro.

-Ah, seu Táquio, bota um arrasta-pé para gente dançar, coloca...

É menina tão nova, direita mesmo cheia de fogo, só aceita dançar com Mario. É que Mario é rapaz trabalhador, novo, ...bonito, e por ser arrimo de família – ela que caipira e fora de moda – sonha que ele será bom marido.Ela não diz nada, mas o olha assim como quem já diz isto quando entra no botequim com o pretexto de comprar chiclete, e do balcão fica o olhando na sinuca, e ele chega a se distrair no taco e erra os buracos provocando a pilhéria dos camaradas.

Mario sorri pra o seu feliz cansaço quando transpõe o portão de madeira da cerca de arame enfarpado do seu quintal. E sua casa, de tijolo cru, tem o quintal iluminado por um bico de luz dependurado no enorme abacateiro.Invade a alma do operário o cheiro úmido do seu brejo, do seu lar; o que já vai arrefecendo o cansaço.Mario olha tudo com uma satisfação, antes de entrar onde a porta já se encontra aberta, como se para certificar que o simples dali é tão real.É tal como se achasse merecesse ter de mais de Deus.E raciocina enfim: sou merecedor.Sente uma bandeira da paz, dentro da sua alma, flamando, flamando.

O som de uma coruja lá na escuridão aconchegante do seu quintal, e sua quase velha mãe sentada, na penumbra da luz da televisão, numa poltrona de couro já rasgada.

-Bênção, mãe – diz ele se detendo às costas dela, e pondo, respeitosamente, a sua mão sobre o ombro dela.

A velha coloca sua mão sobre a dele, ao seu ombro e diz tentando enxerga-lo de viés:

-Deus te abençoe, meu filho – avisa – já tem janta pronto.

Depois do banho frio, ele sai de short apenas, com a toalha em volta dos ombros. Detem-se ao corredor entre a cozinha e a sala, onde a luz ilumina os dois cômodos parcialmente.

A televisão preta e branca, em cima de uma mesinha bamba, ilumina argentinamente a face cândida da mulher que envelhecera tão precoce. Ao intervalo da novela, ela se levanta claudicante em direção a cozinha.Ágil, apesar do jeito desanimado, vai mexendo no armário a pegar prato, e logo mexe nas panelas onde supre o prato e coloca sobre a mesa tosca de madeira forrada com oleado.

Mario senta-se à mesa e vai devorando o prato de comida ainda fumegante, enquanto ouve a mãe reclamar mais uma vez da ausência da filha que se casou e não vem visitá-la.

Falando de boca cheia, Mario vai enveredando a mudar de assunto, dizendo sobre comprar uma televisão colorida.

-Para que – diz a pobre mulher – bobagem por bobagem tanto se faz com cor ou sem cor.

Mario ri de boca cheia mastigando, reconhecendo na própria mãe a sua personalidade avessa ao banal.

O Santo Antônio do Categeró, no oratório, dentro do seu denso quarto era o único luxo de sua vida tão simples, e ao lado do sacro santo o retrato do seu falecido, no tempo que ainda era jovem e usava longas suíssas.

Alisava o retrato e dizia de si para si ou para a imagem do santo:

-Mas, é a cara do Mario. Nunca vi um filho parecer tanto com o pai.

E cuidava-o com tanto esmero; acordando cedo quando ele acordava, preparando-lhe o café, duas fatias de pão com ovos estrelados, a marmita, e mesmo lembrando-o do que tinha que levar sempre.

-Ele merece um tênis novo – disse quando o viu saindo pela madrugada, ainda escura, rumo à estação.

E com isto, no que se queixava da filha que não vinha visitá-la, já planejava. Sabia que ele não se preocuparia, então ela tomaria a frente.Havia por isso um cuidado a certo três meses, de economizar um pouquinho da pensão para a grande empreitada.

Mario deitou-se no seu quarto apertado, sobra sua cama de colchão de capim, com duas idéias: (...) e aquela moça que adora o convidar com os olhos para dançar forró no boteco junto da estação... O nome dela, o nome dela (...) e dentro da escuridão do seu quarto, na quietude morna o sono vem e fecha-se em um nome: Hosana.

Ela é como uma cigarra numa tarde seca de verão. É assim a alegria de Hosana que não sabe nada além daqueles morros verdes e densos que a norteia.

Ela gosta até do cheiro da cachaça choca, porém é muito moça direita e sabe muito bem o homem certo e justo que lhe é o sapato velho que lhe cabe ao pé.

Ela bate na porta dele. Acho que é um domingo, um domingo ensolarado e feito para ela que é alegre e esparsa como uma cigarra.Ela chama, já dentro do quintal, e a velha a olha tão agradecida.

-posso pegar pitangas, D.Dalva – pede com alegria e humildade, como se pedisse um pouco das maiores riquezas de alguém.

A pitangueira carregada, quase junto da cerca com as roseiras, que Dalva plantara e cuida todo dia. Hosana enche todo saco vazio – que já fora de feijão – com as frutinhas, sobre a observação alegre da velha.Ela não entende o prazer da mocinha naquela frutinha, nem mesmo o canto da cigarra no desperdício da tarde, nem mesmo a saia comprida numa moça de aspecto tão loução.

Olhando para o saco cheio de pitangas ela interroga:

-O Mario está ai?

-Lá na sinuca.

As duas estão frente a frente e não conseguem se encarar, embora tão satisfeita uma com a outra. Vêem-se numa perspectiva impossível de ser mudada.E ainda existe a pitangueira, e a cigarra insiste ao - mesmo tempo - que a moça ganha a rua, após agradecer as pitangas, num alvoroço alegre de encontro ao destino.

A velha recolhe-se ao abafado como um santo de gesso que não agüenta a claridade.

Não se sabe que lugar é este no momento em que se está numa cidade que cheira quente toda iluminada quando ainda nem estiver escuro. E as faces, pelos televisores coloridos na vitrine, mostram os movimentos arco-íris da burguesia.

A burguesia locomove-se e ri para o proletário infeliz que sua enquanto pensa, pensa. É tão necessário estar a par das cores da burguesia – pensa Mario vidrado na vitrine.E sabe quem tem que ser rápido ou perder o trem é se atrasar.

Mas nunca a cidade, a migalha da migalha da burguesia o fascinou tanto. Ele, cônscio, que é apenas isto: a migalha de uma burguesia que arrota, uma pequena burguesia.

Ele enxerga no certo clima abafado de fim de ano, uma dúbia, porém tão atraente alegria. E deixa-se, deixa-se, vai se deixando com a desculpa que é pela mãe, pela mãe, que velha tão cedo ficara de esmero por ele.

Prova a migalha que a burguesia deixa cair da mesa, e prova sofregadamente todas às migalhas que vão caindo, e se esquece que vai perdendo a vergonha, e até mesmo achando bonito e fascinante o que faz.

Pouca gente da pouca gente dali se aventuraria e D.Dalva se aventurou, e aventurou-se alegre. O trem – o subúrbio sujo que não era o final da estação – a sapataria empoeirada.Os preços em cartazes vermelhos diziam: ofertas; e ela contando o dinheiro que juntara para ver, se ao certo, daria.O balconista bebendo a ânsia da migalha da pobre senhora ali a conta-gotas.E suas mãos trêmulas num sorriso trêmulo no rosto.O balconista a entregou a caixa com o par de tênis dentro, em mãos trêmulas também, já que a loja estava seca como o dia amarelo naquele bairro esquecido.A moça do caixa, fingia olhar distraída para o nada enquanto o desejo era sorrir para aquela senhora que lhes era a única freguesa em horas.Deviam cuidar em cultiva-la ou perder-se-ia todo o dia...

D.Dalva saiu pronta para voltar, numa felicidade em que mais nada cabia. No trem, segurava a caixa com uma atenção...e bem já se vivia tudo, uma vida inteira.O para sempre chegara com sua primavera florida ao meio de tanta poeira.

Dentro de sua casa, de paredes desembocadas, ela bem prestou atenção no que fizera afinal. Deixara, de flagrante, a caixa em cima da cama do filho.Tentou se sentar e ver televisão, mas a euforia a chamava como para se embriagar numa ansiedade feliz e vã.

A tarde foi cedendo ao apito sinistro da cigarra, e fábrica lá quem sabe...

Mas a noite veio em queda escura e úmida, e a velha cochilou sem sonho na sua poltrona de sempre, com a velha televisão - apenas para iluminar – ligada.

E dormindo quase, Dalva sentiu uma presença. Não uma presença, mas a “presença”, e sentiu cores na sua face esquálida entre a penumbra que ela dormitava.Abriu os olhos e estava o filho a sorrir, e a nova televisão no lugar da então.E apesar da certa felicidade que a tomou, acudiu uma misericórdia: onde estava a outra televisão?

Mas, vendo o filho contente, achou-se contente. E onde ele pusera a outra televisão?Insistia a indagação dentro da pobre feliz senhora, mesmo quando ela se levantou e o abraçou tão forte e sincera, feliz embora certa fatia de indignação: afinal tinha ela perdido o brio também, aquele brio empoeirado e tão fora de uso. Mas se era o que de melhor podiam ter e trocaram por tão pouco.Agora era tarde para se lamentarem, o mal já estava feito.

-Eu já vi o par de tênis novos – falou ele ao ouvido da mãe no abraço.

Dalva então se tranqüiliza. Sabe o destino da sua velha televisão.Agora a burguesia joga seu lixo em cores sobre o rosto pálido ou quase cinza de Dalva e seu filho, e ela ainda acha muita graça, muito feliz.A pequena burguesia, como se não bastasse vomitar arrogância, agora é colorida e mágica, para provar a empoeirada senhora que ela não é nem a poeira que chega aos seus móveis.

O dia seguinte madrugara diferente como a noite anterior dormira. Os canhões foram vencidos por braços frágeis que se puseram à frente.

E as duas fatias de pão, entre os dois ovos fritos, tinham no céu da boca de Mario um paladar diferente do habitual. Era como se pensasse além de rabanadas para o natal, se vendo o velho coador de pano que a mãe passava o café fora para junto do que se exibia no novo mundo dentro da televisão.

No trem, de pé, pouco cochilou olhando os tênis novos. Achou-se bonito, e pensou quando hosana vê-lo de tênis novos certamente vai acreditar na possibilidade.

Sentiu-se um novo homem.

E no durante a tarde em que tudo já se acudira bem que Dalva tentou, tentou ficar sã e distraída com suas rosas que desabrochavam vermelhas na sua roseira junto à pitangueira. Ela não podia se negar, estava tudo tão doce e irresistível até mesmo que se explodisse...

Hosana chamou ao portão para pegar pitangas, e Dalva pode contentar-se que era preciso e certo que ela tomaria conhecimento.

A moça colocou a rosa, que a velha lhe dera, entre os cabelos alvoroçados, e do umbral da porta viu que ela via ao mesmo tempo, exibia sua televisão em cores.

-O Mario que comprou? E sem esperar resposta disse com tanto riso: é linda, parabéns D.Dalva, a senhora merece.

A velha sorriu tão boba de frente para a televisão.

E o mundo acabava-se de felicidade num cotidiano que fino como barbante, embora, nunca se rompia.

Assim era sempre o sol e o céu azul sem pensar nos dias nublados.

RODNEY ARAGÃO

15 DE SETEMBRO DE 2004