A casa amarela da Rua do Figo
No largo quintal dos fundos da casa amarela da Rua do Figo, jaziam brinquedos inertes de adultos que um dia foram crianças.
A casa que já pertencera a quatro gerações da família Canhedo, hoje está fechada e lograda aos maus tratos do tempo.
Fora construída no século passado pelo então imigrante espanhol Don Cortez, e nela o proprietário fez traduzir toda riqueza arquitetônica da época. Não foi poupado espaço para o paisagismo regado de muitas flores, arbustos, árvores ornamentais e frutíferas. Muitos salões e dormitórios, e uma lagoa ao fundo.
Sua fachada era artisticamente orlada com molduras em alto-relevo que imitavam movimentos coloridos. O jogo de telhas em posicionamentos variados traduzia o encantamento de Don Cortez pela fantasia de sua vida.
O prédio era motivo de curiosidade naquela época. Dos seus jardins imensos era possível sentir o odor das flores cultivadas pelo então fiel jardineiro da família. O imóvel era motivo de muitos elogios e propostas de compra elaboradas pelos barões que residiam na cidade de São Paulo. Propostas que nunca foram levadas a sério.
Don Cortez que era casado com a condessa Rita Lopez, juntou riqueza suficiente para se largar nas fanfarras da vida e curtir mesas de jogos para sua diversão. Não tiveram filhos, e por isso a vida social do casal era regada de festas, jogos e viagens.
Numa dessas jogatinas em sua casa, com o grande amigo Doutor Fortunato Canhedo, Don Cortez, homem de palavra e honra fidedigna, apostou sua própria casa num carteado amistoso. Não tinha ele nenhum receio em perder a jogada pois o doutor não era tido como bom jogador. Aliás, nem jogador era. O Doutor passara para cumprimentar os amigos e logo partiria. A Condessa que já estava descontente com a vida vazia que levava e que pretendia voltar para a Espanha, apoiou e até torceu para que o doutor desta vez se saísse bem. Isso seria um castigo para o esposo viciado nas cartas, e assim, ele concordaria mais facilmente voltar para a terra de sua família. Com pouca experiência no carteado, mas muita sorte, o Doutor Canhedo ganhou a partida. Deste modo se tornaria o proprietário da casa amarela. Ganhador, ele não acreditava ter vencido o maior jogador de pôquer da cidade. Ele que nem conhecia bem as cartas do baralho, experimentava a euforia da vitória. Diante de muitos olhares assustados, Don Cortez honrou sua palavra. Nessa mesma noite, Doutor Canhedo levou para sua casa a Certidão de Propriedade do imóvel, o que fez com que as crianças e Dona Gertrudes nem dormissem de felicidade.
Dois meses mais tarde a família Lopez Cortez voltara para a Espanha, e deixara para trás a riqueza que construíram na Rua do Figo. A família Canhedo ocupou a moradia em seguida, e lá muita sonhos das crianças foram realizados.
As figueiras imensas dominavam todo o espaço lateral da enorme mansão. Ao vento suas copas arcavam e tocavam as mãos de Carlinhos, Lucia, Fernando e Valéria. Sob essas árvores as crianças passavam quase todas as tardes, e com elas os primos e amigos que se juntavam em brincadeiras alegres e cansativas.
À noite, elas, as crianças, reuniam-se no salão de leitura e ouviam Dona Gertrudes contar histórias fantásticas, até que iam aos poucos adormecendo e eram levados para seus quartos.
Pela manhã, a cama parecia ter espinhos. Os que resistiam mais um pouco se deixavam fantasiando brincadeiras e acontecimentos, até que se levantavam afoitos. Pulavam bem cedo da cama, e as brincadeiras começavam já em seus aposentos. As bonecas de porcelana com roupas de seda, chapéus e sapatinhos pareciam conversar com as meninas. Os cavalinhos e homenzinhos de madeira tomavam conta do chão do quarto dos meninos.
No assoalho de madeira corrida, os passos de Dona Gertrudes dirigiam-na ao quarto de Carlinhos e Fernando. Estes ainda preguiçosos punham-se em pé obedecendo prontamente a ordem de descer para o café da manhã. Já as meninas se demoravam mais. Suas bonecas as detinham mais tempo sobre o tapete azul do quarto, e as roupinhas e chapéus coloridos não queriam ficar sozinhos. Era preciso que Dona Gertrudes usasse de argumentos convincentes: “os meninos estão tomando café e vão brincar na beira da lagoa, vocês não querem ir com eles?”. Isso era demais! Brincar no quintal dos fundos, à beira da lagoa que Dona Gertrudes impedia rigorosamente pelo risco de afogamento, era tudo que as meninas precisavam para descer em disparada e se juntarem aos irmãos.
O sol brilhava na água da lagoa, e dava ao quintal um aspecto mágico. Os brinquedos iam sendo trazidos aos poucos. Numa mesa construída em alvenaria, para esse fim, eram mantidos lanches e sucos de frutas colhidas do mesmo quintal. O dia todo poderia a criançada ficar à beira da lagoa com seus primos e amigos. Os mais velhos poderiam nadar sob a vigilância de seus pais que eram convidados para esse lazer. Os empregados se divertiam também, pois o trabalho saia da rotina. As meninas com seus trajes de banho, andavam em grupos, e cada qual conduzia suas bonecas e brinquedos. Vez ou outra se davam a pulação de cordas e amarelinhas. Quando Dona Gertrudes se distraia na tagarelice com Dona Marilia, as meninas corriam para o pomar, subiam nas mangueiras e lá ficavam com as amigas por bom tempo.
Extasiados, todos iam embora quando o sol baixava. Ficavam os empregados a limpar e recolher todo o resto. Os brinquedos eram cuidadosamente guardados no salão de brincadeiras que ficava anexo a casa e de frente para a lagoa. Era o melhor dia da semana este!
Ali cresceram Fernando, Carlinhos, Lúcia e Valéria, nesse clima de fantasias, e brincadeiras. Num ambiente alegre e repleto de fatos que ficariam para sempre registrados em suas memórias. Cresceram e casaram-se. E então novas crianças passaram a habitar a casa amarela.
Doutor Canhedo, ficou feliz com a chegada de seus sete netos. Novas brincadeiras e novos amigos chegariam com eles. Outra geração que certamente carregaria a alegria ao despertar na casa amarela. Dona Gertrudes, já idosa, ainda se dava ao trabalho de acordar as crianças e conduzi-las para as brincadeiras no quintal das figueiras. Não ia mais à beira da lagoa. Suas pernas frágeis impediam-na de descer até o quintal dos fundos. Ficava no caramanchão, aboletada no sofá branco, à porta do salão das brincadeiras vigiando as crianças e os adultos.
Num janeiro de sol intenso, Doutor Canhedo se foi. Vitima de uma tuberculose que ele mesmo tratava em seus pacientes. Os moradores da casa amarela sentiram a morte do homem que um dia trouxe vida nova para todos. Depois disso não era mais a mesma coisa morar ali. Uma grande tristeza abateu a todos. Dona Gertrudes fechou-se na sala de leitura e não ia mais para seu quarto. Depressiva, morreu no final do mesmo ano vitima de saudade do esposo com quem permaneceu casada até depois das bodas de ouro.
Seus netos, já adolescentes não sentiam mais alegria em correr por entre as figueiras, em subir nas mangueiras, ou nadar na lagoa nas tardes de sol.
Os brinquedos jaziam quietos nas prateleiras do salão de brincadeiras, e o caramanchão parecia ter se tornado mais estreito agora. O sofá branco onde as bonecas descansavam nos finais de tarde estava empoeirado e sem uso.
Dona Valéria incentivava os filhos e sobrinhos a trazerem seus amigos e primos para as tardes na lagoa. Passavam lá algumas tardes do verão. Mas as lembranças embaçavam as brincadeiras e faziam com que esse lazer não tivesse mais o mesmo sabor.
Ela e o esposo, Doutor Agostinho Montserrat, resolveram então restaurar a mansão e trazer turistas para visitação.
Nova movimentação para a casa amarela e para seus empregados. Todas as terças feiras as áreas de convivência da casa eram abertas para satisfazer a curiosidade de turistas de toda a região. Dona Valéria e Dona Lúcia passaram a ter mais interesse no negócio quando começaram a contar histórias de suas infâncias aos visitantes. Parecia fácil para elas, pois tudo estava muito vivo em suas memórias. Na lagoa, permitiam que os convidados sentassem e degustassem sucos de frutas naturais que a casa oferecia com alegria e prazer. Não permitiam nadar, pois tal qual Dona Gertrudes, elas temiam afogamentos.
Os filhos se casaram, e a casa estava de novo com novos moradores. Carlinhos se tornou avô bem cedo. Fernando não teve filhos, mas sempre foi um tio exemplar. Valéria e Lúcia se divertiam agora com algumas festas que davam na casa amarela. Seus netos já não visitavam a lagoa nas tardes de verão, eles viajavam para Europa em busca de felicidade e sucesso. As figueiras não tinham mais crianças sob elas e arcavam amarelecidas ao vento sem mãos para encontrar suas folhagens. A sala de leitura se transformou em enorme salão de festas, anexada que foi ao salão de estar na última reforma.
O salão de brincadeiras ficava trancado todo o tempo, e lá iam se amontoando tralhas e mobílias que iam sendo substituídas com o tempo. Suas prateleiras armazenavam poeira e brinquedos mudos. Quase esquecidos.
Os netos se casaram e a idade castigou os quatro filhos de Dona Gertrudes Canhedo. O silencio sentenciava a casa amarela à morte. Seus moradores já bem velhos sorriam risos lerdos ao se lembrarem de suas infâncias sob as figueiras, e das tardes de verão à beira da lagoa. Dona Valéria chamou a empregada e pediu que abrisse o salão de brincadeiras. Depois de remover o pó e abrir espaço para circulação entre os móveis e baús, os quatro irmãos puderam entrar e derramar lágrimas de saudade pela vida que tiveram e não conseguiram transportar para seus netos e bisnetos.
Nas prateleiras cavalinhos de madeira e homenzinhos confeccionados com tocos de árvores gritavam o nome de Carlinhos e Fernando, que se aproximaram felizes. As bonecas com roupas de sedas e chapéus amarrotados, encostadas umas às outras e sem os sapatinhos, olhavam tristes para suas donas que também entristecidas acomodaram-se no sofá branco para apreciá-las.
Na casa mais ninguém além deles quatro e das três empregadas. O jardineiro há muito se fora, e nenhum outro veio para ocupar seu lugar. As roseiras secaram e as gramíneas se espalharam desordenadamente pelo jardim da frente. A lagoa agora coberta de arbustos não reflete mais o sol que não consegue penetra-la. A mobília de seus pais estava ali amontoada e empoeirada, como estavam suas memórias.
Naquele salão de brincadeiras onde antes eram cuidadosamente guardadas as alegrias das crianças, hoje se amontoavam lembranças empoeiradas de velhos, viúvos e solitários. Agora eles podiam entender a tristeza de Dona Gertrudes quando se confinou na sala de leitura.
Permaneceram ali muitas horas, junto do passado que lhes fora tão bom. E ali morreram os irmãos Canhedo agarrados aos seus sorrisos de criança.