O Mendigo

Cabelo engomado com gel sem álcool e gravata combinando. Celular ultramoderno, com tecnologias distantes da minha compreensão porém importantíssimas para ver e ser visto. Confiro o dinheiro na carteira de couro de antílope. Contabilidade feita: uma nota de 50, uma de 100 e uma de 1 real. Perfeito. Fantasio o momento exato em que abrirei mão de uma nota gorda e carregada de tanto significado na frente dos colegas de trabalho. E a nota de 1 real? Pouco peso monetário mas essencial para eliminar a imagem do ostentador crônico.

- O quê? Falta só um real? Deixa que eu pago.

Ah, que sensação confortante! Imaginar que quase pago não é quitado, e em um súbito golpe de raciocínio, prover o companheiro de trabalho necessitado com uma mísera nota rabiscada de um real. O que seria daquela transação monetária sem aquela notinha, que exceto pela utilidade cotidiana, somente desfigura a beleza das outras.

Avenida Paulista. 7:30 da manhã. Caminho na direção do escritório tentando driblar o bloco de pessoas que insiste em confrontar-me logo de manhã. Levando em consideração os esbarrões, penso estar sempre contra a multidão. Tento imaginar algo diferente com o intuito de minimizar a chateação. Tentativa inútil. Sou acordado com um forte encontro de ombros. Quase ninguém parece se incomodar com o desordenado ballet de corpos. O quase sou eu. A menos de 30 metros do escritório uma voz aponta para mim:

- Senhor?

Rapidamente procuro o responsável e encontro largado ao chão, com o corpo estrategicamente descansado sobre um papelão molhado, O mendigo. Não digo UM, porquê apesar das roupas sujas, os dentes amarelados, e o odor insuportável comum à classe, seu olhar perfurador chama a atenção. Parece atravessar meu way of life e dissecar meus objetivos de vida. Minhas pernas estavam rendidas, coladas ao piso sujo e insensíveis a minha vontade de fugir, quando ouço nitidamente:

- O senhor tem cem centavos?

Não acredito. O mendigo acabara de quebrar minhas pernas. Quem ele achava que era? Me senti confuso. Um real, somente utilizado para fins estratégicos de convivência, havia adquirido proporções gigantescas. Como se não bastasse a unidade alternativa, o valor jorrava da boca do mendigo, ou melhor maluco, ou melhor...TERRORISTA, com invejável atitude. Não era para fazer graça ou mostrar raciocínio matemático. Somente era a forma como o medigo enxergava os valores. Essa distorcida percepção do habitual me incomodava. Aquilo foi suficiente para que, em tom desafiador, eu disparasse:

- Serve 1 real?

Após o consentimento Do mendigo, abri a minha carteira de couro de...ah, não importava mais, e retirei a valiosa nota, sem nem ao menos desfrutar aqueles segundos de despedida. Continuei meu trajeto, acovardado. Não me incomodavam mais os esbarrões do bloco humano. Perdi a vontade de trabalhar. Somente desejava um lugar sobre o papelão molhado.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 18/01/2006
Reeditado em 14/11/2006
Código do texto: T100531
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