Amor e Traição
A casa de Mário, sempre foi um lugar de retirantes, como ele costumava chamar seus conterrâneos. Sim, de pessoas vindas do interior do Estado da Bahia, a procura de médicos, compra de “miudezas” para revenda, estudantes em férias etc. Era uma casa simples, modesta, mas espaçosa; cabiam quantas pessoas fosse necessário, parecia uma república. Gente por todo lado, dormindo nos corredores, em colchonetes, nos sofás velhos, desbotados e até em cima de uma mesa grande de cedro no meio da cozinha. Uma parafernália! Panelas tilintavam pela noite adentro, cheiro de café forte por todos os compartimentos, conversas sussurradas, risadinhas abafadas, anedotas, causos, gritinhos e ais de amor, pelos cantos e varandas. Eta lugar bom danado!
Mário, meu grande amigo de infância, morava no bairro de Brotas em Salvador, numa velha casa, herança de seus pais. Casa essa transformada – sem planejamento – em refúgio dos seus amigos da pequena cidade de Sumaré. Filho único de uma família de agricultores e pecuaristas gostava de sentir o calor humano e o entra e sai do povo da sua terra. Todo dia tinha gente na sua casa e ele aproveitava para jogar cartas – jogo de buraco – até altas horas da noite e contar causos sobre a vida da fazenda e da gente de sua cidade.
Eu mesmo fiquei hospedado lá em muitos fins de semana, mesmo morando também na capital em um bairro distante do seu. Gostava de ouvir as risadas das comadres e seus filhos ecoando por toda a casa, de namorar na sacada, ver a alegria estampada nos rostos simples e ajudar os doentes que precisavam de cuidados.
Mário foi o meu melhor amigo. Costumávamos tomar banho de rio, de cachoeira, jogar bola de gude, pião, futebol, empinar pipas, disputar as meninas no colégio, confidenciar um com o outro as nossas intimidades.
Passamos no vestibular no mesmo ano em que seus pais faleceram em um acidente de automóvel. Foi terrível para ele, mas superou a dor e conseguiu terminar o curso de engenharia civil, enquanto que eu demorei um tempo para concluir o curso de Direito e passar nas provas da OAB. A amizade continuou cada vez mais forte e a sua casa também continuou como um refúgio seguro para os desvalidos de Sumaré, os sem teto na capital baiana. A fazenda era administrada pelo seu tio Almir, pois, Mário estava prestes a se mudar para o Iraque. Ia trabalhar em uma grande construtora. Foi aí que tudo começou a mudar em nossas vidas.
Fátima foi o pivô da nossa separação. Uma amizade colorida passou a existir entre nós três. Ela uma advogada de nome - tínhamos a profissão em comum - mas era namorada de Mário, ela era sim, o grande amor de sua vida; era obcecado pela mulher, amava-a com todas as suas forças, chegou a me confidenciar que largaria seus planos de residir no exterior caso Fátima assim o quisesse. Ela não quis, não pediu, nada fez para impedir sua partida. Ele ficou chocado, decepcionado. O namoro dos dois durou dois anos, tinham planos de casamento, até eu aparecer na vida deles mais assiduamente. Saíamos juntos para dançar, comer, ir à praia, clube, jogos, teatro... Fui me acostumado com as brincadeiras, conversas, com o cheiro do corpo dela sempre tão próximo, do hálito puro... Às vezes, para disfarçar o meu interesse, levava uma garota para servir de escudo e assim, poder esconder os meus sentimentos.
Fiquei apaixonado pela Fátima e não sabia como fazer para sair desse enredo. Nesse ínterim, Mário se preparava para partir, iria voltar dali a um ano para o casório e eu cheguei a torcer para algo lhe acontecer e ele permanecer definitivamente no Iraque. Não o via mais como amigo, mas como rival; esqueci de todo o nosso passado, queria sim, vê-lo longe de Salvador e do Brasil, o mais rápido possível. E ela? Estava cada vez mais afeiçoada a mim, trocávamos idéias sobre o Direito até altas horas da noite pelo MSN e celular. E, os nossos olhares não deixavam dúvidas da paixão alucinada que estava surgindo entre nós.
Esperei Mário partir, fui alegremente leva-lo ao aeroporto. Fátima disfarçou o choro, estava emocionada e ele me pediu para tomar conta dela e distraí-la enquanto estivesse fora. Assenti com a cabeça sem muita convicção, Ele não percebeu nada. O tempo passou e nós vivemos uma tórrida paixão. Mário ligava, falava conosco dos seus planos de voltar para o Brasil, estava ganhando muito dinheiro, queria casar tão logo retornasse. Para Fátima e eu, isso não interessava mais, no entanto, não tivemos coragem para assumir publicamente o nosso amor, parece que o fato de nos amar às escondidas, dava mais sabor à relação.
Seis meses se passaram, a vida continuava às mil maravilhas para mim; bem empregado – passei a trabalhar no mesmo escritório dela – até Fátima me informar da sua inesperada gravidez. Não sabia o que fazer, se ficava feliz ou triste. Pensei em Mário e no que falaria para ele, como iria explicar tamanha traição. Pela primeira vez senti o peso do meu ato, da ingratidão e da responsabilidade de ser pai. Chorei, esbravejei e fiquei deprimido. Antes tudo era uma fantasia, um sonho proibido, desejos, alegria, festas, paixão... Fátima ficou decepcionada comigo, não esperava essa minha reação. Passei a ficar pensativo, não estava preparado para viver uma vida cotidiana a dois e desejei não ter me metido nessa enrascada. O amor parecia ter acabado, só restava à dor no peito, a saudade do amigo, as lembranças dos tempos vividos, sua casa, hoje reformada, mas ainda cheia de gente, sua amizade sincera, nossa infância e confidências. Tudo acabado!
A barriga de Fátima começou a aparecer, ela queria casar comigo de qualquer jeito, contar para o Mário, abrir o jogo, mas eu queria mesmo era partir, deixar tudo para trás, fugir. Não deu tempo, ele chegou inesperadamente, numa bela noite de verão. Apareceu cheio de presentes para nós, sorridente no barzinho que costumávamos frequentar. Assim que o vimos se dirigir em nossa direção, Fátima desmaiou, corremos para socorrê-la e foi assim que ele descobriu a sua barriga e o susto o fez estremecer. Nada disse, deixou os presentes em cima da mesa, olhou para nós dois compreendendo e saiu de mansinho.
Não pude escapar do casório e nem do destino cruel. O nosso filho é portador de necessidades especiais, não pode falar, é surdo e não pode andar. Estamos, Fátima e eu, presos a esse elo indissolúvel. Não tenho mais por ela a paixão inicial e nem ela sente mais o mesmo por mim, vamos vivendo.
O Mário é hoje um grande empresário da construção civil, casou com uma arquiteta e tem dois filhos. Não quis nos ouvir, preferiu o afastamento, mas nos manda todos os anos cartões de natal e votos de eterna felicidade. Que gozação! É a vida...