Entre o sonho e o milagre
“Senhor, não sou eu digno que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo”.
Senhor, não vos levo comigo para minha casa porque não a tenho. Moro num barraco de lona numa favela violenta. Lá, nem tamborete para sentar tenho. Durmo no chão. Como o que me dão. Caço emprego há anos. Sempre volto para casa descontente, infeliz. Como vedes, não é nenhum mar de rosas a minha vida de cidadão.
Meus filhos conhecem mais os becos da favela que eu. Sua mãe passa o dia inteiro nas cozinhas alheias procurando trazer as migalhas que recebe, metade delas deixadas nas gavetas dos coletivos que precisa apanhar para se adequar ao seu ir e vir.
À noite, ouço os tiros demolidores, o trotar dos pés assassinos dos meus irmãos favelados e a dor da morte nos gritos escassos que nos amedrontam. Meu medo já me é ralo, diluído pela repetição das cenas de violência do dia a dia favelar. Lá, os mansos morrem por último porque se escondem do palco do medo.
Minha fé, Senhor, continua viva. Ai de mim se não a alimentasse. Quando me humilham, lembro-me de Vós; quando tenho fome, adormeço ao ouvir vossa voz no vento. Meus filhos já não me pedem o pão, acham-no, e eu acho que é vossa mão santa. Minha esposa nada me cobra. Tolero seu adultério porque é com parte dele que ela mantém a casa onde vivemos estranhamente. Como vedes, a vida me é desigual a de tantas outras favelas. Não possuo outro herói que não Vós.
Como posso chamar-vos para que adentreis minha morada? Apenas falais e tudo será feito segundo vossa ordem.
O que peço? Não sei dizer. Não tenho feito nada de bom para o mundo. Acomodei-me a pedir e pedir e, por tanto encontrar o que peço, deixei que a vida me levasse como todo o dia que se torna noite e que se finda quando já nasce outro sol e eu me vejo nas ruas a pedir tantas outras coisas ao povo do mundo. É o renovar-se de minha miséria, Senhor.
Ontem, quando cheguei em casa, nada encontrei. Meus filhos haviam morrido e estavam soterrados. Minha esposa, ao tentar salvá-los, morrera também. Eu não tinha mais o barraco, os filhos que amei mesmo com o meu descuidado gesto de cuidar.
Senhor, foi justamente hoje que senti vossa presença amiga e me lembrei de que necessitava de vós e que só por vossas mãos poderia ser servido. Necessitava do alimento da alma. Olhei para o barro frio e molhado que guardava os corpos deles, abri os braços, deixei que o vento me beijasse e, olhando para os olhos da chuva que ainda caía, disse: como posso chamar-vos Senhor, se já não tenho casa, já não tenho filhos e esposa, já não tenho saúde para correr às ruas a pedir o alimento do corpo?
Senti uma mão no meu ombro direito. Ela pesou. Era um homem de uma face mansa, olhar protetor, espírito que me falava sem palavras. Perguntei-lhe. Quem és?
-Tu me chamas sempre. Mas tua vida estava escrita. Deixei que as coisas acontecessem e então, após tudo, resolvi mostrar-me a teu coração.
-Quem és?
-Sou o que sou.
-Então, Senhor, não sou mais digno que entreis em minha morada porque ela não me é mais hospitaleira. Mas, se quiserdes, mandai que este barro saia de cima dos meus e aí tornarei a pedir-vos vossa entrada no meu barraco tantas vezes queira.
-Tudo te será feito. Anda, deixa que teu sono seja teus passos. Dorme e que teu despertar seja uma fogueira cheia de mel silvestre, porque tua fé fez transformar tua morte em uma vida. Eis que ressuscitaste entre o sono e a vigília.
Lembro bem que quando acordei e vi minha esposa e meus dois filhos deitados a dormirem do meu lado, não entendi o que de real me havia acontecido no sonho. Mas me foi real tudo isso. Só um milagre de Deus me convencerá do contrário.
É por isso que todos as noite, antes de deitar, eu ponho meu rosto entre as mãos e digo:
“Senhor, não sou digno que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo”.
Continuo morando na Rocinha, a sentir desgosto e a dormir com Deus no coração. As balas têm me assustado muito, ainda não consegui emprego, meus filhos continuam a passar o dia todo na rua e minha mulher a fazer o que jamais pensasse poderia fazer um dia.