A maldita publicação!
Contramandada por sua razão, ela me veio como um uranólito sem saber da verdade. O publicado a havia ferido espiniformemente, como florão estaqueado no teto literário de um grande circo armado para se ler como um mural decepador. Eu não havia feito nada daquilo. A imprudência, talvez socavada por uma ordem rasteira chegada no silêncio de um bastidor sem alma de alguém ávido por discórdia, o fez desacertadamente. Li como uma feroz torroada, não pelo nome dado ao autor da matéria, mas pelo que isso podia gerar diante da leitura que deveria ser feita por Talma.
O matutino publicou os elogios a mim, como se tudo houvesse sido feito por ela. O silêncio de sua ausência na cidade me fez pensar que havia gostado do que lera. Mesmo assim, liguei para ela várias vezes a fim de esclarecer que apenas um erro de uma digitadora causara a inversão das autorias da matéria.
Quando já havia se passado duas dúzias de dias, liguei novamente para tentar ouvi-la. Como a emoção tem o poder de ferir-nos e desagregar o que às vezes pomos nas mãos para ofertar a outrens! Sem sucesso, a conversa que pensara se faria dos dois lados do fio telefônico foi interrompida por ela, com uma desgraciosa pancada do aparelho que me chegou como a tronchura de um desrespeito. Um amigo seu que estava ao meu lado ponderou:
-Dissimule. A idade causa à alma esses desacertos também, e o corpo, às vezes, age desinteressado em ser cortês no susto que a emoção lhe faz.
Eu ouvi triste, fiquei a pensar na dor recebida com o aviso daquele gesto e, súpero, meu pensamento me pediu que esperasse a noite, olhasse as estrelas, contemplasse a lua e só depois fizesse o viramento do que imaginava pensar fazer contra aquela criatura.
Li e reli a matéria que me parecia uma obra de arte. Na voadura pensante que dei, não entendi o porquê de tanta mágoa de Talma em não aceitar aquele doce equívoco. Seu nome era forte, a matéria bonita e bem feita. O que lhe faltara para tê-la motivado expelir uma ira discursiva tão amarga, feita para ser mostrada a tantos?
Dois jornais publicaram a matéria a seu pedido. Aconselharam-na outras almas pobres e amarradas às sermoas que seus ouvidos tanto ouvem. Um incômodo escaldador me fez dirigir ao jornal que primeiro havia publicado a matéria; Nenhum editor jornalístico rega a desculpa que carece ser impressa para dizer da correção de algum erro. Isso maltrata o andar das outras folhas em que sucedem os fatos. Reconheciam o erro e não publicavam as merecidas desculpas a mim, esclarecendo a grande culpa de digitação como vinda de uma funcionária que talvez nunca saiba o mal que nos causou.
Passados alguns dias, minha alma, no caminho da pacificação e do esquecimento, encontrou-se com Talma em casa de um amigo querido. Meu coração saltou de alegria. Queria beijá-la e dizer-lhe que aquele equívoco não poderia jamais afastar-nos porque a espiritualidade forte que parecia nos congruir, era o elo de nossa irmanação.
Amigos me levaram até ela; a rede balançava vagarosa, seu corpo senil brigava com a gravidade para se levantar e eu, com um coração cheio de braços, disse-lhe:
-Deixe que eu a levante daí, beije sua face. Converse como seu amigo, já que nada diferente disso fora feito outrora. Eu lhe quero bem. Jamais faria o que você leu e entediou-se.
-Cuide em retratar-se!
-De quê, minha querida?
-Da matéria em que você perversamente pôs o meu nome como autora. Eu não costumo agradar a ninguém com palavras tão generosas. Meu jeito de escrever é outro! Cuide em retratar-se e logo! Você ainda não foi interpelado pelo meu advogado? Se não, aguarde-o!
-Entendo que assim não chegaremos a conversa alguma. Fere-me falando desse jeito, logo a senhora em quem eu punha um bom naco de admiração?
-Pois é! Antes de publicar meus dois artigos, procurei saber sobre você entre meus confrades e eles foram unânimes em dizer que você, para subir na vida, é capaz até de passar por cima de sua mãe.
-A senhora acreditou no que lhe disseram, dona Talma?
-Acreditei em tudo, seu filho da p.
Senti o céu desabar sobre mim. A quase centuriã transfigurou-se, falou palavras desconexas, me descontentou e fez-me chorar de tristeza porque não respeitara a mulher-mãe que me trouxera ao mundo, a qual já tendo perdido a carne, permanece vivíssima dentro de mim. Uma mulher que, apesar de morta, ainda me conduz nos passos de minha estrada.
A partir daquele dia pude ter a certeza de que o joio pode se fazer de trigo e criar inventivas inverdades a ferir-nos profundamente diante dos açoites das línguas mais que obscenas, imundas e infames.
Talma envenenou-se dias após. Tragou do ar quente e mesquinho que elevou seu corpo na voadura dos que morrem ainda vivos. O meteoro passou e se espedaçou nas areias desérticas do seu coração que falsamente anunciava uma coragem de ser boa e de servir: uma alma singela.
Todas as noites rezo para Talma sem me descuidar da traição do sono pesado que sempre me chega no imediato deitar do corpo. Não posso jamais me esquecer- de servi-la com minhas orações e segredar para Jesus que um jovem como eu, agora na lucidez que meu corpo presenteia, um dia poderá ser um centurião e ter na esclerose natural dos vasos sanguíneos o hipofluxo do oxigênio que sorrateiramente tira dos escritores a fluência dos dedos quando querem escrever as palavras mais belas e flóridas.
Talma foi posta neste conto como uma flor em quem pus asas, virou pássaro e só pode chegar ao meu jardim lá pelas madrugadas, no silêncio de nossas desculpas, quando nos abraçamos novamente e sentamos para preparar uma linda matéria jornalística, não para um jornal apenas, mas para a vida dos que leem muito e assim sabem que perdoar é amar duas vezes, e por isso vivem entre nós nesses nossos sonos que, volta e meia, voltam.
Para você, Talma, meu beijo, embora só possa fazê-lo com essas palavras, porque não sei se você já pensa como este escritor que apenas se lembra do que lhe aconteceu, mas não mais das palavras assombradas que sua boca expulsou no estaqueado de uma emoção que não pode ser nem moldura do viver, nem um mostrável retrato.
Para nós, acho que há duas doces cruzes, porque os recomeços podem nos apontar fantásticas viagens e um broto vergado pode crescer forte e produzir doces frutos para mais de uma alma saboreá-los.
Venha, Talma, porque não há mais soluço de dor, mas uma saudade triste de uma amizade perdida. Continuo sendo um imenso urso panda, cheio de purpurina para lhe enfeitr hibernando, mas tendo ao alcance da mão um pote cheio de água fria para lavar sua língua e matar sua sede. Mais uma vez, desculpe este João que não consegue fazer inimigos: afinal, junho e julho são os meses em que mais lembramos esses nossos santos, os Pedros e Joãos sem nos esquecermos de que, em agosto, o frio é bem maior para quem repousa solitário e triste. Eu nunca fiz o que imaginou a sua cabecinha que não pensou antes de retirar a flor tão firmemente posta no vaso que você quebrou de forma tão brusca. O jardim eu reguei para você. A flor era sua. Nossas palavras nos feriram muito!
Deus seja por nós.