ZEZINHOS E ZEZINHOS

O caramujo se ia, menino mole e branco escondido no casco também frágil: um, anteâmbulo do outro, numa história alquebrada ao perigo. Passinhos tão meigos à procura do sol morno para se abrir vivo e resplandecente. Um torvelhinho de uma carne alva, quase translúcida, se contorcia deixando o casco calcário cheio de formas de bicos e ocelos. Vivia esse velho molusco no seu próprio latíbulo, opíparo leque, às vezes aberto para o tempo morno do sol e ao lado do frescor do vento. Um caramujo que me parecia inocente: todos ledos enganos.

Cada vez que eu me sentava às margens do rio, olhava na direção daquele lajeiro enorme e via, meio molhado, meio enxuto, colado na pedra pela baba grossa que brotava de suas entranhas, meu amiguinho de aparência tão frágil mas que guardava dentro de si minúsculas cercárias apavorantes que tanto mal podiam fazer-nos no simples encontro com nossa pele, em um não tão saudável banho de rio de interior, coisa por nós tão desejável.

Zezinho nunca vira naquele animalzinho tão frágil qualquer perigo. Mergulhava no Mundaú para lavar até a alma. Bungava com as mãos nas tocas das pedras atrás de pitus, mergulhava no mais fundo do rio, saltava de lajeiro em lajeiro e, vez por outra, dissecava com a ponta dos dedos dezenas de caramujos moles que, distraídos, tomavam o banho de sol mais forte do começo de tarde.

Caramujo escancarado, água morna, cercária aproveitando para passear nas águas mansas do rio e o mal que os olhos não podiam ver e que o pensamento do moleque não cria, ganhava grandes pernas. Aquele mole mal era tão duro de acabar-se!

Passaram-se os anos e encontrei Zezinho já homem feito, casado, pai de onze filhos; um carroceiro anônimo de União dos Palmares.

-Quanto tempo, Zezinho e nos pomos frente a frente. Mais de trinta anos se passaram e estamos aqui.

-Mas o senhor, doutor, está sadio, corado, barriga fina e batida como a de um atleta. Olhe pra mim!

Zezinho era um “Jeca Tatu” do vale do Mundaú. Aquele mole e falsamente inofensivo caramujo era o casulo que hospedava as cercárias que nada mais eram do que as precursoras da Xistose. Nas águas mansas e mornas do começo de tarde, o Mundaú ficava cheiinho delas, saídas das entranhas do molusco e daí até o contato com a pele de Zezinho, um pulo gostoso. Saía da água, coceira leve nas pernas e no resto do corpo e era esse o sinal de que os peixinhos do mal já haviam penetrado na pele de todos os Zezinhos que gostavam do mergulho no velho Mundaú, como aquele que acabara de encontrar. Encontrei-o amarelo, barriga imensa, cheia da água da doença, olhos fundos, pele esverdeada, braços finos, pés inchados e passos difíceis: parecia que as pernas lhe pesavam cem quilos, cada.

-Ainda toma banho no Mundaú, Zezinho?

-Todo dia! Fiz uma puxadinha de palha de coqueiro na beira do rio, atrás de casa e lá mesmo faço minhas obrigações e o rio leva. Mergulhar mais não: tiro a água do rio com a caneca e me banho.

Zezinho morria a cada dia e espalhava a doença quando ia banhar-se na beira do Mundaú. Os ovos do schistossoma em suas fezes eclodiam no contato com a água suja do rio, e caíam nela outros serzinhos que corriam para junto do caramujo aberto e, sem lhe pedir licença, adentravam nele e, no seu corpo mole, viravam cercárias que, nos dias de sol, água morna de começo de tarde, saíam a nadar procurando pernas para beijarem e, encantadas com os beijos, só saíam do corpo dos Zezinhos quando novas fezes cheias de ovos caíssem nas águas de trás de casa no banheiro que um deles havia feito.

A China convocou a população para, durante um fim de semana, catar os caramujos da espécie que reproduz a cercária que causa a esquistossomose. Fizeram um banquete com os moluscos recolhidos das águas dos rios e lagos chineses. Erradicaram a doença num sonho gastronômico. Que lindo! País sério este!

E no Brasil, como é feita a coisa? Eu sei: os rios correm vagarosos, assoreados e sujos e neles os caramujos proliferam despreocupadamente. Lajeiros imensos são palcos de exposição desses caramujos que, ao banharem-se, continuam mandando cercárias passear nas águas do rio e estas sempre acham os Zezinhos dos beira-rios que deviam estar nas mansões dos atletas da saúde, aqueles que frequentam os gabinetes políticos luxuosos e que podem decidir pela erradicação dessa doença miserável conhecida entre nós pela alcunha de xistose.

Uma liderança forte que possa convocar a população das áreas infestadas por esses caramujos para se construir um banquete à brasileira, não creio que haja sob o céu brasileiro. Em lideranças comprometidas com um trabalho mais prático e sério do que teatral, também não acredito.

O que conheço mesmo, e dá dó, são velhos cientistas da melhor estirpe, aposentados e tristes por não estarem participando de tantos banquetes possíveis de serem feitos e, com isso, erradicando as mazelas que cronificam doenças nos corpos inocentes dos nossos legítimos cidadãos, para que grandes interesses escusos possam vender ao país, cada vez mais e por muitos anos, drogas caríssimas que embriagam os caramujos da vida mas não matam as cercárias do dia a dia. Sabem o porquê? Por que Zezinho não pode morar fora das margens do rio e ter uma casa saneada. A Saúde do Brasil, falo da saúde política, bem que merecia acabar com os “zezinhos” dos gabinetes luxuosos, para deixar viver os verdadeiros Zezinhos que, nos prenúncios de seus gemidos, aguardam com dor o presente que um dia possa torná-los verdadeiros cidadãos, de peles róseas e barrigas batidas, como atletas da cidadania.