O Amor

 

            Casou-se com um anão.

            Ninguém entendia, visto não ser ele rico ou dotado de qualquer inteligência, graça ou elemento que fosse mais relevante que a sua estatura.

            Foi o assunto da cidadela. Pequena, encravada entre serras que um dia cuspiram diamantes. Vivia agora do turismo, do gado, da caridade da história. Uma estrada tortuosa era o único meio de acesso e rota possível de fuga.

            Ela, ao contrário, era bela. Ruiva, branca, lábios grossos e carnudos, seios volumosos, roliços, convidativos. Uma cintura fina, encantadora. A pele alva, macia, delicada. Por mais de uma vez tentei obter uma graça, um sorriso, um olhar. Indiferença foi o atributo que recebi. Como os outros da cidade, sendo um dos únicos doutores, lancei meu ódio mortal ao anão.   

            Tão poucas criaturas belas na cidade e a vitória pertencia àquela réstia de humanidade: compacta, pernas tortas e miúdas, faces secas, cabelo quase inexistente, mais uma penugem, com um olhar morto e sem brilho. Nariz avantajado, orelhas de abano. A voz era gutural, fina, doía aos ouvidos.

           Era um artista. Ganhava muito com graças que fazia aos turistas. A cidade tinha prédios antigos, colossais, esculturas, ornamentos e prêmio da ONU. Vinham de longe para ver aquilo que estávamos cansados de admirar.

            O jornal era de minha propriedade e demorei a publicar a nota de matrimônio. Tive que vencer primeiro a minha própria incredulidade. A nota saiu triste e acanhada ao pé de uma página. A cerimônia atraiu todas as atenções. Uma única pergunta brotava: como é possível?

            Seria louca?

            Fizeram belo vestido. Não era ela de família rica, ou fina ou direita. A mãe criou-a sozinha. Teve que receber alguns homens para garantir o sustento em dias difíceis. Muitos acreditavam que a filha a seguiria e se tornaria a mais bela cortesã desde as épocas áureas.

            Erraram.

            A jovem resolveu casar-se. Todos os homens choraram. As mulheres satisfeitas, livres de uma possível e cruel concorrência. Havia ainda uma pergunta que fazíamos nas rodas de bebida masculina: como ele vai conseguir? Certamente tudo ali é pequeno. Imaginem? E alguém mostrava o dedo mínimo. Risos. Ciúmes. Inveja.

            Nos pequenos municípios, naqueles tempos, tudo era público.

            O casamento foi festa coletiva. Na rua fizemos grande mesa. Enfeites. Testemunhas.

            A noiva entrou muda. Disse o sim. Saiu calada. O anão ria de orelha a orelha. Digo que era muito, pois a enorme cabeça, desproporcional, tinha largo espaço. Engasguei em seco. Nunca me casaria com ela. Sei bem. Mas aventuras noturnas gostaria de ter. Que homem naquela cidade se dignaria a um enlace sério com uma moça daquelas origens?

            Restou ao anão, com sua baixa estatura, zombar de nós.

            Nos anos que se seguiram procurei uma traição, uma fofoca, uma insinuação. Manteve-se serena, discreta, digna. Acompanhava o marido nas exibições. Colhia as notas. Recebia dos turistas olhares encantados e propostas indecentes. Sempre ouviam não de uma boca que nunca sorria.

            Tornou-se cada vez mais bela.

            Um dia o anão morreu. Não tiveram filhos. Passou a fazer doces. Vendia-os aos turistas. Uma noite, tardia, quando fechava o jornal e voltava para casa. Cruzamos em viela escura. Saudei-a com a cabeça. Estava linda. Não resisti. Eu tinha que ter certeza. Puxei-a pelo braço.

            - Se me amasse, não precisaria se preocupar em pagar as contas...

            Suavemente retirou minha mão. Fitou-me com profundos e cansados olhos castanhos.

            - Eu não me preocupo em pagar as contas. Saiu andando calmamente. Andei na escuridão, envergonhado de mim mesmo e da minha pequenez. No íntimo sabia quem era o verdadeiro anão...