Eles são um trem
Ele sonhou com um trem na última madrugada. Sonhou com um trem e com uma ferrovia – os mesmos com os quais sempre sonha de forma recorrente. De dentro do trem ele vislumbrava a paisagem e, de vez em quando, um sobressalto. Em determinado momento, uma voz que saia dos alto-falantes do vagão pedia aos passageiros para prenderem a respiração por um instante, pois o trem iria passar por uma região contaminada por um gás tóxico. Passado o claustrofóbico incidente com a região tóxica, o trem se aproxima da estação onde ele iria saltar. As portas se abrem, ele ameaça saltar, porém o trem, apesar de haver reduzido drasticamente sua velocidade, não pára. Então ele se angustia por não ter podido desembarcar ali, onde duas pessoas o esperavam. E agora? ele pensou. Passada a estação, ele tenta esquecer o fato de não ter conseguido fazer seu desembarque e segue em frente, no seu vagão, e volta a contemplar a bela paisagem verde: a mesma paisagem comum a quase todos os seus sonhos ferroviários. Ele passou quase toda a sua vida próximo a uma estrada de ferro. Por isso, é bem provável que não precise de magos para explicar a impressionante reincidência de seu sonho de aço e capim.
Ele acordou. Ele acordou pensando nela. Ela, sua deusa distante. Ele sempre acorda pensando nela. Mas ele não perde tempo tentando estabelecer relação entre ela e o trem. Ele apenas pensa nela e em tudo o que teve com ela. Em tudo o que ela lhe deu. O que teria sido, teoricamente, bem pouco para pessoas práticas. Contudo, foi muito pra ele. E muito, como se sabe, é mais que bastante. Muito é aquilo que entorna. Muito é a abundância, é o capital, é o excedente. Melhor seria se tivesse sido apenas o bastante. Mas não. Aparentemente foi muito pra ele. E ele vive num mundo em que se reverencia o muito. E ele a reverencia. Ele a reverencia como a uma princesa.
Ela é linda. Ele acha isso. Foi num site de literatura que ele viu seu rosto pela primeira vez. Ele gostou do seu nariz. Ela gostou do Che Guevara em sua camisa. Ela gostou dos seus escritos. Ele acha isso: que ela gostou dos seus escritos. Parece que ela gostou sim. Então eles fizeram companhia um ao outro por um período de cinco ou seis meses. E-mails. Todos os dias e-mails. Mil e-mails. Conversas pela Internet. Umas poucas por telefone. Três cartas de papel, duas dele e uma dela. E um encontro físico, que foi o ponto nevrálgico e crucial da história deles. Da história deles como casal acidental – pois histórias individuais são um outro assunto. O encontro ocorreu três meses após o primeiro contato visual pela Internet. Num pequeno hotel do tipo hotel-fazenda. Um pequeno hotel-fazenda. Um pequeno Éden. E eles foram Eva e Adão ali. Ali brincaram de amar. Testaram os seus sexos. Experimentaram o que há tempos queriam. Experimentar é brincar, e vice-versa. E brincar é tudo o que mais importa nesta vida. Sim. Brincaram de amar. Brincaram de selvagens. Brincaram de irmãos. Foram selvagens. Foram irmãos. E esqueceram da roda viva. Dois dias. Saiba-se: mágicos.
Bruxaria. Psicologia. Verdade. O que é a verdade? Não há verdade. O que há não é a verdade sobre algo. São, sim, verdades – todos hoje já deveriam saber disso. E quanto ao poder das criaturas humanas? É quase desconhecido. E incomensurável. Não cabe num apartamento, nem numa repartição, num emprego “bem sucedido”, num centro urbano, num diploma, num troféu, numa casa com varanda. Quanto poder... Ela sentiu um pouco desse poder como jamais tivera experimentado. Ele idem. Transformar o querer em poder, o querer em fazer, é quase uma bruxaria empírica. Poder. Poder. E as unhas crescem.
Ele segue. Ele vive a pensar nela. Essa hipótese a assusta e faz bem ao mesmo tempo. Ela o teme – o teme tanto que chega a procurar seus defeitos de moço pobre como quem procura desesperadamente a lente de contato que caiu na pia, só pra ter mais um álibi pessoal para justificar sua ruptura. Ela o aprecia. Ou aprecia o fato de ele ser tão atraído por ela – dá no mesmo. Mas ela teme perdas. Só isso. Ela gosta de experimentar, não de perder. Quem gosta de perder? Ele também gosta de experimentar. E o fato triste de tudo é que se experimentarem demais eles perigam algo perder. Enquanto eles temem a trama do amor – mais ela do que ele, acredito –, eles vão vivendo em suas confortáveis prisões. Confortáveis. Mas prisões. Eles sofrem. E lamentam que viver seja sofrer. Mas preferem viver a morrer, claro. Ele ama as pessoas que o cercam. Ela também. Vivem cercados de amor, responsabilidade e medo.
Ele espera ainda por um sinal. Apenas um sinal. Ou, ainda, numa melhor hipótese, uma mensagem. Um e-mail, um telefonema. Pra ver se recupera a adrenalina perdida em sua viagem pelo intestino do vulcão. Ele está fraco. Quase feliz. Porém fraco. Ele jamais deixou de pensar nela um só dia – ainda que apenas uns minutos nos dias mais felizes, e várias horas nos dias mais nublados. Ele. Ela. Eles viajam no breve trem da juventude, nessa breve vida única, de poucas escolhas.