DO BRIDGE... À ROSA EMUDECIDA
Ela contabilizava alguns anos de vida.
Não muitos, talvez uns sessenta, mas o suficiente para ter muitas memórias.
Até então de vida social ativa, costumava reunir os amigos em casa para um bate papo aos fins de semana, geralmente lá pelas cinco, quando o odor do cafézinho torrado em casa já perfumava todo o ambiente, um pouco antes das partidas de bridge.
E naquele dia algo estava estranho.
Os amigos, que já a conheciam de longa data, perceberam certa apatia frente aos assuntos que sempre dominara.
Naquela tarde não falara dos acontecimentos da semana, tampouco questionava as manchetes dos jornais e da televisão, e também não nos convidou para as sequenciais partidas do seu jogo preferido.
Sequer sintonizara na novela das oito, quando sempre acompanhava as histórias com atenção e interêsse.
O marido estava preocupado.
Estivera com ela ao médico, que ao lhe indagar o que acontecia, lhe respondeu que não lembrava o porquê de ali estar, mas que sentia-se ótima.
E foi servindo-nos o costumeiro " cafézinho", que ela começara a se despedir do mundo, para entrar no desconhecido e impressionante mecanismo que desliga a vida...em vida.
Na sequência de preparar o café, que sempre fizera questão de servir, esqueceu-se do pó, e serviu aos convidados apenas a água quente "coada".
-Está saboroso? perguntou automaticamente.
Todos entreolharam-se, a entender que ali começara uma despedida, nem sempre tão lenta e gradual.
Que chegara o momento de "todos" enfrentarem a doença, que a tiraria de cena para levá-la ao seu próprio mundo, onde tudo parece novo e desconhecido.
Há pouco tempo eu a vi.
Não me reconheceu.
Tinha olhos de criança, e uma alma que me pareceu assustada, mas ao me ver, colheu uma rosa vermelha e ma ofereceu com um sorriso.
Há mundos que se isolam, porém certos atos parecem que são imunes aos efeitos celulares das deficiências químicas.
Mesmo quando a memória já não permite o semear das flores, ainda é possível um coração para entender os jardins...
(Verídico)