ROMANCE DESBOTADO

Maria de Graço ou seria de Grasso? Mas era para diferenciar de tantas outras Marias que se conhecia por ali. Era mulher de um tal Graciano, ou Graço, ah sim era Graço mesmo.

Paraibana, branca como uma vela de sete dias apagada, a voz tão fina que só se entendia o seu riso, um riso à toa, sempre pelas desgraças, era o que mais a fazia rir. Usava roupas que mesmo costurava com os olhos míopes, um desatino como se a tosse fosse o próprio barulho da maquina de costura.

Seus dois filhos mais novos viviam com o nome metido exaustivamente em sua boca, pois ela parecia adorar repetir: “O Erasmo e a Neide... Ou a Neide e o Erasmo...” e acabava dizendo assim como qualquer vírgula, a voz parecendo um miado de gato dentro de um saco.

Erasmo não gosta de usar chinelas – falava muita coisa no feminino (outra mania) – ou a Neide não gosta de doce de laranja da terra, não gosta, ver ela largou tudo dentro da pia. Neide não usa batom ainda, Neide usa pochete em vez de estojo escolar.Erasmo come de tudo, come até pedra.

Alguém vem lhe servir um punhado de pedras no prato:

_ Ele quer mesmo?

Maria de Graço ri então como quem acabou de ouvir a noticia de uma desgraça, um atropelamento naquela curva sinuosa em Belford Roxo, mas Maria de Graco diz que Erasmo não gostou, olha a cara de Erasmo, espia Erasmo D’Zaura, espia só.

Com as famosas chinelas trocadas Erasmo bem que podia morder as pedras, trinca-las, acho que Maria de Graço abriria e fecharia a cara muito branca em sanfona, só rindo era apenas o que sabia fazer.

Tinha sim uma filha mais velha, chamada Zeza, Josefa, mas não agüentava o nome verdadeiro, em troca escrevia o Zeza em tudo: Nas paredes de tabua da cerca, na porta do quarto da colega, no muro de sua casa enchia-se com giz ou carvão, ao lado no portão também tinha, nos discos de novela que colecionava, numa blusa branca, assim riscando na tinta da geladeira com alfinete, na lama do vaso de antúrio que ficava no quintal, na gordura ensebada da parede contígua ao fogão, na poeira que se alojavam nos moveis, na casca do tronco da jaqueira assim talhada a canivete, nas bordas dos folhetins baratos que as primas é que a emprestava – por que nem com isto ela queria gastar dinheiro – nos balões brancos das fotonovelas, aqueles que ficavam os pensamentos em vão dos personagens, nas capas dos gibis então, no rosto bonito do pôster do Fábio Jr, nos chinelos havaianas brancas (e era por isto). No seu guarda-roupa de uma porta empenada então, além dos pôsteres de Fabio Jr e Gilliard, lá estava seu nome Zeza escrito a caneta esferográfica azul, vermelha e até verde, em letras pequenas, medias, grandes, gorduchinhas, em vertical, horizontal, diagonal, cruzando-se, feitas com esmaltes...Uma festa de Zeza em cores e letras.

Zeza tinha sempre um aéreo de quem parecia não prestar atenção em nada, estúpida quando ria das desgraças que acontecia nas telenovelas; as orelhas de abano prendiam os cabelos cortados como a heroína da novela das oito.

Já em 1980 ia para os bailes com calça boca de sino, rindo mais alto que as colegas, dando um grito mais alto, ao no brejo, topar com uma rã pulando a atravessar seu caminho. E lá estava escrito em sua blusa preta com as quatro letras: Z, E, Z, A em formas brancas, os Zs em forma de patos e os dois A em forma de A mesmo.

Maria de Graço comentava que Zeza não iria ser moça à toa, que Zeza adorava fazer cortinas para a cozinha com sacos de leite Mimo. Recicladora, ecológica sem muita consciência sonhava com certeza se chamar Kathleen como a heroína dos seus romancinhos cor de rosa que se desmanchava a ler pelas tardes à sombra de uma aroeira na frente de casa, mas já que era Zeza, assim Zeza teria que está escrito em todo lugar ainda que imaginável.

“Zeza pegou um transatlântico e sozinha fugindo do seu próprio nome conheceu John e assim no convés do navio, virando-se não precisou dizer seu nome ao lindo lorde que se encantara por ela, lá estava estampado em sua blusa: Z, E, Z, A”. Ah, como Zeza sonhava, ouvindo a cigarra, largando o livro amarrotado, já riscando na areia do chão a mesma sombra da aroeira: Z, E, Z, A, um coração e um ama alguém, como se Deus lá dentre aquelas nuvens fofas pudesse ler e saber.

Maria de Graço chamava: Zeza vem para dentro, Neide e Erasmo já estão almoçando, vem Zeza, mas Zeza quer sonhar bêbada por uma ficção absurda, mas o cheiro de feijão carregado de louro e toucinho vinham numa fumaça invisível, e Zeza vai assim balançando os cabelos cortados como o da heroína da novela das oito, exibindo as orelhas de abano com os brincos enormes de argola, e de lá de dentro da casa a voz da mãe, fina, que diz que Neide, por favor, coma feijão, Neide uma moça não cresce sem comer feijão, olha como Erasmo come feijão, espia só Erasmo como pega grossura de homem, Neide não faz esta cara de nojo, Zeza vem logo ou a comida vai esfriar, Zeza!

Zeza passa pela cortina de tiras de saco de leite Mimo que ela mesma fizera, e antes de sentar à mesa, risca com a ponta dos dedos sobre a poeira na toalha de oleado branco: Z, E, Z, A e ALGUEM...

Maria de Graço acha graça é que ela nunca tinha ou não achava tempo para espanar os moveis.

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Rodney Aragão, o2 de março de 2007.