Scarllet - O Conto de um suicídio

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18/10/1999

O médico legista, enquanto entrava na casa de Joel , não imaginava o que encontraria por ali.

Ele caminhou para o local do corpo. Ele conhecia o homem. Era seu amigo. Pelo menos até o divórcio de Joel, oito dias atrás. Joel tinha uma vida maravilhosa, uma bela mulher e uma filha de quinze anos, Anna.

Tudo ruiu, mas ninguém sabe como. Provavelmente Joel e sua mulher brigavam pelos mais diversos motivos.

Mas isso não interessava mais: Joel estava morto.

Aquele pesada finalidade aterrava-o: Joel estava morto.

Ele ainda não sabia quem avisaria Jordan, mas não seria ele.

Então um policial se aproximou dele:

- Isso foi achado junto ao corpo.

Disse o policial, entregando um saquinho plástico com algumas folhas de caderno dentro.

Ele pegou o papel, retirou as folhas e começou a ler:

‘‘A história de Scarllet; O conto de um suicídio.

A história de Scarllet se confunde com a minha. Eu sempre tinha Scarllet perto de mim, mas nunca tinha reparado. Depois da separação que reparei em Scarllet. Eu não tinha compania, precisava de alguém para conversar, e Scarllet foi perfeita para isso. Scarllet era linda, loira, diferente da minha ruiva esposa. Na verdade, tudo começou no dia dez de outubro...

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10/10/1999 – DIA 1

Joel ainda não entendia como havia se separado. Mas ele não precisava entender, precisava aceitar.

Era a hora de montar sua casa nova. Os móveis, os eletrodomésticos, os quadros. Os quadros.

E assim foi.

Primeiro seu quarto, depois a cozinha, depois a sala, e por fim, a decoração.

Ele colocou primeiro o espelho do seu quarto, depois os dos banheiros, e por fim, chegou a hora de colocar os quadros.

Tudo bem que a pintura das paredes era precária, mas era necessário. Joel não tinha dinheiro para isso. Seu antigo emprego não pagava bem e ele não tinha economias para muita coisa, nem mesmo sabia como faria quando Anna fosse dormir em sua casa, já que só havia um pequeno sofá, e Anna tinha quinze anos, não podia mais dormir em um sofá de dois lugares.

Colocou os quadros. Eram quatro. Um de homens idosos bebendo:

- Seus beberrões!

Ele disse.

Então prendeu o segundo, na cozinha, uma fruteira.

O terceiro era de um soldado, provavelmente voltando da batalha, pois estava sujo de sangue e solitário:

- Seu otário, perdeu a batalha.

Disse Joel.

E finalmente, no principal corredor da casa, uma bela mulher loira, século 18, jovem.

- Você é realmente bonitinha.

Disse, ele, depois de pendurá-la.

- Você realmente acha?

Respondeu o quadro.

- Acho – disse Joel – Você realmente é linda, mas... Você é um quadro, não deveria falar!

- Mas eu falo, e se você não reparou, eu me mexo também.

A mulher no quadro então levantou uma das mãos e passou-a nos cabelos.

- Qual é seu nome?

Perguntou Joel:

- Olhe no livro.

- Que livro?

- Esse do meu lado.

Joel então olhou no livro ao lado dela: Scarllet.

- Scarllet. Bonito nome.

- Obrigada. E o seu, qual é?

- Você não sabe?

- Como saberia?

- Você deve tê-lo ouvido por aí, afinal, eu tenho o seu quadro há vários anos.

- Não... por algum motivo as únicas memórias que eu tenho são desde quando você falou comigo.

- Então como você soube onde eu deveria olhar para saber seu nome?

- Pelo mesmo motivo que os bebês sabem chorar quando nascem.

- E que motivo seria esse?

- Sobrevivência.

- O que tem seu nome a ver com sobrevivência?

- Não sei, mas foi a única resposta que me veio a cabeça.

- Certo... Aqui, vou dormir um pouco, tive muito trabalho hoje, depois falo com você.

- Me leve com você.

- Não.

- Porque não?

- Não sei, nós nos encontramos a primeira vez hoje e você já quer ir dormir comigo?

- Bem, é!

- Eu te levo, vamos.

Joel então levou a moldura de Scarllet até seu quarto, apoiou-lhe na estante, tomou um banho e deitou-se.

- Scarllet?

Chamou ele.

- Fala.

- Por que a primeira mulher linda como você que me dá mole tem que ser um quadro?

- Vai ver você estava esperando por mim.

- É, deve ser.

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18/10/1999

O médico legista ainda não acreditava. Seu amigo havia se matado por uma mulher, pelo menos pelo jeito que descrevia sua caminhada rumo a morte:

‘‘No dia dez de outubro eu conheci Scarllet. Tinha acabado de me separar, estava solitário, precisava de companhia. Scarllet me ofereceu essa companhia. Ela era perfeita. Sempre enigmática, sempre inteligente. Ela parecia não ter problemas, até o dia em que vimos o filme...

11/10/1999 – DIA 2

Joel via o filme, um drama que falava especialmente de morte, e como sempre que via esse tipo de filme, temia o inexorável encontro com a morte:

- Eu não gosto desses filmes – Disse Joel para Scarllet – Eles me lembram demais a morte.

- Então porque você vê-los?

- Falta do que fazer.

- Sabe Joel, eu também temo a morte.

- Mas você é um quadro, não morre!

- Tudo o que nasce morre, e eu tive um nascimento, então morrerei.

- Pode ser. Mas mesmo assim é uma possibilidade estranha, concorda?

- Claro.

- Sério, Scarllet, você sempre fala desse seu jeito misterioso. Fale abertamente, você está escondendo alguma coisa?

- Claro que estou.

- O que seria?

- Segredos do artista.

- Que artista?

- O que me criou, claro.

- Você sabe o nome dele?

- Sei.

- Mas como? Você mesma disse que só tinha consciência desde que eu falei com você.

- Mas eu sei.

- Como?

- Sei como sei. O que importa além disso?

- Tudo. O fato de você saber quer dizer que, mesmo sem perceber, você já tinha uma certa consciência, guardada...

- Eu sei disso.

- Guardada nos...

- Segredos do...

- Artista.

- Você está insinuando que o artista que te pintou sabe o segredo da sua vida?

- Eu nunca disse que o real artista foi o que me pintou, disse que foi quem me criou.

- Isso parece papo religioso, parece que esse é um tal de Deus.

- Já ouviu uma frase bem usada no renascimento?

- Depende, qual?

- Deus fez porque tinha as ferramentas, se o homem as tivesse, faria. E alguns tem.

- O que você quer dizer?

- Que foi um homem que me criou, e outro me pintou.

- Então o que te deu fala e tudo era o quê, uma espécie de mago?

- Longe disso.

- E o nome do pintor?

- Benedicto Salvatore.

- Italiano?

- Deve ser.

- Será que se eu o contatar ele poderá me levar ao tal criador?

- Não.

- E qual seria o motivo...

- Ele morreu. Antes de me terminar.

- E quem te terminou.

- Ninguém. Só faltava uma camada de tinta.

- Entendo. E o criador, pode dizer o nome dele?

- Não.

18/10/1999

Quanto mais lia, mas o médico legista se arrepiava. Aquele registro era pura fantasia.

A mulher tão maravilhosa era um quadro?

Isso não fazia o menor sentido. Mas para Joel deveria fazer. Ele queria saber qual era o mistério.

Voltou a ler:

‘‘A partir daquele dia, os segredos de Scarllet começaram a me fascinar. Mas, mais importante do que o que Scarllet escondia era a visita de minha filha, que chegaria ao pôr do Sol. Eu sabia de uma coisa: iria procurar saber mais sobre o pintor de Scarllet, mesmo que isso não levasse a nada. Iria saber mais. Mas a visita da minha filha me fez me desviar completamente desses pensamentos...

12/10/1999 – DIA 3

Joel esperava ansiosamente pelo som ritmado da campainha.

Sua única companhia era Scarllet, com quem falara menos desde a conversa depois do filme.

- Eu vou comer alguma coisa. – Disse Joel – Enquanto ela não chega.

- Traga alguma coisa para mim.

Respondeu Scarllet.

- Você come?

- Claro!

- Como?

- Boa pergunta.

- Não vou trazer nada.

- Ótimo.

Depois de comer o que tinha que comer, Joel ainda esperou uns vinte minutos por sua filha, em silêncio.

Então a campainha tocou.

- Anna! Tudo bem?

- Tudo bem, pai e com você?...

Ao ver o olhar de Anna, Joel entendeu como sua aparência devia estar. Barba por fazer, expressão cansada, enfim, derrotado.

Anna entrou, e logo se sentou ao lado de Scarllet, onde Joel estava antes.

Joel então, sem mais palavras, pendurou Scarllet na parede, agradecendo por sua filha não ter feito nenhuma pergunta.

A noite chegou, e, na primeira oportunidade, Joel se trancou em seu quarto com Scarllet:

- Desculpe por não ter falado com você o dia inteiro.

Disse ele.

- Não tem desculpa. – Respondeu Scarllet – Eu quero que você me pendure agora no meu lugar, para lá eu passar a noite.

- Tudo bem.

Joel então desceu, pendurou Scarllet e foi procurar Anna.

Ela estava na sala, jogando solitária alguma coisa com cartas.

- Oi... – Começou Joel – Será que posso ficar aqui com você?

- Ah, pai, pode, entra.

Anna então continuou seu jogo silenciosamente.

- Ah, Anna, - Disse Joel – você não gosta muito daqui, não é?

- Não.

- Então será que podia me dizer seus motivos para isso?

- Simplesmente prefiro a casa da minha mãe.

- Isso tem a ver com a casa ou com a sua mãe?

- Os dois?

- E...

- Pai, desde que eu cheguei aqui, você mudou. Eu, ainda agora, ouvi você pedindo desculpas para alguém por não ter falado o dia todo, ou coisa assim. Com quem você estava falando?

- Quem sabe um dia eu te conto.

- Fala agora!

- E se eu tivesse certeza que você não ia acreditar?

- Eu tentaria.

- Pois bem. Ela se chama Scarllet, é loira, linda...

- Pai, você ta separado faz uma semana!

- Aí que vem o mais estranho de tudo.

- Sério, o quê?

- Ela é o século de e é um quadro.

Anna começou a rir.

- É verdade – ria-se Anna – Eu não acredito.

- Eu vou provar.

- Como?

- Vou fazer Scarllet falar com você.

Joel então correu para o corredor, e chamou Scarllet.

- Você precisa falar com a minha filha! Para ela acreditar em mim.

Scarllet então olhou com desdém para Joel e disse:

- Não!

- Por favor!

- Mesmo que eu quisesse, eu não poderia.

- Como?

- Só você pode me ver, idiota!

- Sério?

- É.

- E você sabe a razão?

- Sei.

- Pode me contar?

- Não.

- Vá pro inferno!

Joel então voltou para a sala e disse:

- Anna, ela não quer falar. Sinto muito.

- A mamãe estava certa, você enlouqueceu completamente.

- Sua mãe disse isso?

- Disse, e estava certíssima.

- Amanhã você sai daqui e não volta nunca m... Até eu decidir.

- Ok.

18/10/1999

Inacreditável. Era a palavra que resumia melhor o relato de Joel. O médico legista não acreditava naquilo,

O homem enlouquecera a ponto de conversar com quadros, e pior, discutir com a própria filha sobre o quadro.

A leitura se tornara indispensável agora.

- Doutor Gabbord?

Chamou o jovem oficial de polícia.

- Sim?

- Achamos uma coisa na sala que pode interessar ao senhor.

- Em que sentido?

- Pessoal senhor. Sabemos que o falecido era seu amigo.

- Sim, era. Leve-me até lá, por favor.

Henry Gabbord acompanhou o policial até o quarto de Joel, lá estava o quadro descrito na carta de suicídio dele.

Uma bela mulher, loira, século dezoito, tudo batia, exceto uma coisa: O quadro estava rabiscado.

Em canetinha vermelha: ‘‘Não você, não eu, não nós, NÃO, NÃO, NÃO’’.

Henry não se agüentou: Voltou, ali mesmo, a ler a carta-diário de Joel:

‘‘Minha filha foi embora. Depois disso, fiquei dois dias sem falar com Scarllet. Mas no dia quinze tudo mudou. Scarllet decidiu voltar a falar comigo...

15/10/1999 – DIA cinco

Joel pegou Scarllet do corredor onde ela estivera pregada, e levou-a novamente para a sala.

- Vai falar comigo agora?

Disse ele.

- Vou. – Respondeu Scarllet – Mas com uma condição.

- Qual?

- Peça desculpas a sua filha.

- Ahn?

- Isso mesmo.

- Depois eu peço.

- Depois de quando?

- Depois de quando for antes de eu pedir desculpas.

- Pode ser.

- Você é doida?

- Tanto quanto você.

- Eu sou doido?

- Conhece a ti mesmo.

Joel então sentiu uma vontade de perguntar uma coisa a Scarllet, coisa essa que tinha pensado em perguntar antes da briga por causa de Anna.

- Posso te beijar?

- Como você me beijaria.

- Beijaria a tela. Não faz diferença.

- Pode. Mas você realmente quer?

- O que você quer dizer com isso?

- Digo, você acha realmente que deveria me beijar?

- Acho.

- Arrogante.

- Que?

- Você é extremamente arrogante.

- Por querer te beijar.

- Também.

- Então me diga, eu sou arrogante só por isso ou tem mais?

- Conhece a ti mesmo.

- Tchau.

Joel então retirou-se, imaginando que segredos guardaria a tinha daquela tela velha.

18/10/1999

Agora Henry não entendia mais nada. Como um quadro abalar Joel tão seriamente, quando todos os amigos o diziam o mesmo e não surtia nenhum efeito?

Ele caminhou um pouco pela casa.

Quando entrou na sala, imaginou o diálogo entre um homem segurando uma tela e conversando com ele.

Não culpava nem Anna nem a ex-mulher de Joel por achá-lo maluco. O homem realmente estava em um estado deplorável.

Era melhor que parasse de ler aquele relato de loucura. Como o próprio título dizia, ‘‘o conto de um suicídio’’.

Não, ia ler. Não podia deixar de saber o motivo de Joel ter se matado.

‘‘Eu agora começava a não gostar de Scarllet, tinha medo do que ela pudesse dizer para mim.

Scarllet era cruel em suas palavras, era direta. Por algum motivo, esses modos dela me deixam triste, sentindo um forte pesar, como se eu tivesse dito o que ela me disse para alguém que eu amasse muito. A partir deste ponto eu comecei a tentar extrair a verdade dela de qualquer jeito, com investidas estúpidas, que em nada dera resultado. Até que no dia dezessete eu consegui...

17/10/1999 – ÚLTIMO DIA, DIA 7.

Joel andava de um lado para o outro, transtornado. Não consegui de jeito nenhum arrancar nenhuma palavra de Scarllet sobre seu tal criador. Tentaria novamente.

- Sabe, Scarllet. – Iniciou ele – Eu venho pensando, e tomei uma decisão. Nem que eu tenha que ficar trinta horas tentando, hoje você vai me responder diretamente tudo o que quiser.

- Não.

- SIM, VAI FALAR!

Joel estão puxou a faca que tinha, oportunamente, deixado em cima da mesa.

- Fala, - Disse ele – ou eu te rasgo.

- Certo, eu falo.

- Comece.

- O criador está sempre com você, te acompanha para todos os lados, sempre, sempre.

- Fala mais.

- Meu pintor morreu pouco depois de você, ou melhor, sua ex-mulher, comprar-me. E o criador, você sabe quem é.

- Fale mais.

- Não.

- Então vou te rasgar.

- Tente.

Joel então se aproximou de Scarllet, fez um movimento com a mão, mas travou antes de acertá-la.

- Eu... Não consigo.

Disse ele, choroso.

- Sabe o motivo, Joel? - Disse Scarllet – Você sou, eu sou você! Dois e um só!

- Você está mentindo!

- Não, Joel, não estou.

- Prove.

- Simples demais. Como eu te entendo tão bem? Como tudo que eu digo você sente como se você mesmo tivesse dito? Como sua consciência inconsciente poderia falar com a sua filha? Coitada da menina, estava certa. Você endoidou, Joel! Ou melhor, eu endoidei, nós endoidados, vós endoidaste, eles endoidaram!

- Eles, que eles?

- Eles, eu, você e o criador!

- Mas não éramos só eu e você?

- Não, eu, você e a loucura, o criador, ou criadora!

- Se você sou eu, então me diga, meu nome todo!

- Joel Eric Kinsfork.

- Onde eu nasci?

- Rio de Janeiro.

- Uma coisa que eu sei...

- Então eu sei também.

- Qual era o nome da primeira mulher que eu beijei?

- Marianna, ela tinha em média um metro e setenta, morena, aparelho, um corpo realmente bonito.

- NÃO! – gritou Joel, desesperado – ISSO É IMPOSSÍVEL!

- Não Joel, não é. Adeus, voltarei para o criador!

- NÃO!

Então Joel correu, para seu quarto, com Scarllet, e começou a escrever em cima dela, como se isso fosse mudar a realidade:

- Não você – falou extremamente baixo, ao mesmo tempo que escrevia – Não eu, não nós. NÃO, NÃO, NÃO.

Começou a escrever na primeira folha de papel que vira, e achara outras, e escrevera mais. Então juntara tudo. Tomara sua decisão: Suicídio. Mas alguém tinha que saber sua história, a história de Scarllet.

Então viu a janela aberta. Quebrou-a. Um caco de vidro. Olhou para sua própria garganta. Um movimento da mão. Negrume.

18/10/1999

Henry Gabbord lia agora a última página da carta. Um pedido de Joel.

‘‘Você que me leu, não me julgue mal. Só faça o que te peço, mesmo que não me entenda. Faça o que eu não tive coragem de fazer. Destrua o quadro. Por favor.

Fim do meu relato. Espero que o outro lado seja bom.

Joel’’

Henry então se aproximou de Scarllet. Lembrou-se de pegar uma faca na cozinha. Mas não era necessário. Joel deixara tudo preparado. Uma faca ao lado do quadro.

Henry pegou a faca, e sem hesitar, rasgou o quadro.

Era o fim.

Esconderia aquele relato, para que ninguém soubesse da loucura dele.

Faria parecer que fora acidental. Faria jus a memória de um amigo solitário, enlouquecido pela condição em que vivia.

Era o fim. O fim da jornada de um homem louco, mas são.

Porque a fronteira entre a loucura de um homem são e a sanidade de um homem louco, nem Freud explica.