Algum domingo
Bocejo com a boca mais aberta que posso, acabo de acordar, domingo. Retirando a cera dos olhos caminho cambaleante ao banheiro. Se meu reflexo me julgasse, diria em seu tom mais sarcástico como eu estava belo naquela manhã. Preguiça demais para tomar um banho, apenas lavo o rosto e escovo os dentes. Bocejo mais uma vez e tiro minha roupa suja, qual acabei dormindo com ela após chegar da festa, e ponho outra. Olho para o relógio e vejo que já são duas horas da tarde. Por força do hábito, procuro algum almoço na geladeira e não encontro nada. Desço daquele apartamento até um restaurante do outro lado da rua. Seu Bimba assistia a alguma coisa na televisão quando me viu e me cumprimentou desleixadamente. Ele era uma pessoa que eu gostava muito, mas nunca disso isso a ninguém, sempre me tratou bem em seu restaurante e nunca cobrou o dinheiro que lhe devia. Poderia agradecê-lo por tudo, mas preferi cumprimentá-lo da mesma forma. Siriana, sua filha, me traz um prato e talheres com um copo de refrigerante, sorri e me pergunta sobre a ressaca. Ela sempre foi muito bonita e aparentemente interessada em mim, mas eu nunca tive coragem de me sentar com ela e simplesmente conversar, talvez descobrir que a amava e por muito tempo não sabia. A cafeína do refrigerante me ajudou a acordar e a comida preparada por Siriana me ajudou a recobrar as forças. Com apenas um obrigado seco e um aceno me despeço de Seu Bimba e sua filha, pagaria depois.
Me jogo na cama esperando o tempo passar e quanto mais espero, mais demora a passar, ligo a tevê. Passo pelos canais procurando algo que valesse a pena ver, mas é domingo. Por algum motivo me dá vontade de jogar bola e penso nos meus amigos. É bom ver seus rostos em minha mente e o sentimento de segurança que tenho neles. Poderia ligar para eles e combinar de reunirmos, jogar futebol ou somente sair para beber, mas o sono me alcança e acabo dormindo.
O barulho irritante do telefone me acorda, é minha mãe. Sorte minha ela me chamar para jantar na casa dela, pois não tenho comida em casa e tenho receio em pedir fiado a Seu Bimba de novo ou teria covardia em rever Siriana? Pouco importa, a água quente relaxou meu corpo e minha barriga marcava a fome. Eu amo minha mãe e amava meu pai, dizia isso sempre a eles, mas depois que meu pai morreu eu não visitava mais minha mãe com tanta freqüência Me pergunto se a amo menos agora do que quando eu a dizia que amava todo dia.
O barulho do velho carro me lembrou do quanto eu queria um carro novo. E para ter um carro novo precisava de um emprego bom, que não conseguia nunca. Talvez se tivesse mais dinheiro eu pudesse pagar minhas dívidas com Seu Bimba. Criar coragem para chamar Siriana a um jantar romântico, parecido com algum filme. Reformar o apartamento. Constituir família, me casar. Imagino-me no lugar de minha mãe, convidando meu filho vadio para jantar em minha casa. Perdido nesses pensamentos me encontro em um cruzamento, verde. Tudo parece se mover tão lentamente, os faróis de um carro se aproximando pela minha lateral. E, de repente, tudo acontece muito rápido. Não sei se estou sentado ou pendurado. Sinto o sangue escorrer em meu rosto. Está difícil de respirar. Tantos sonhos que tinha, tantas coisas a fazer. Dizer a Seu Bimba quanto gostava dele e de sua filha. Dizer a ela. Chorar por meu pai e abraçar minha mãe. Sair com os amigos, me divertir. Família. As faces assustadas de pessoas que nem conheço me trazem a realidade. Pensando melhor, não mudaria nada deste domingo.