BINGO

O cocozinho de um sabiá sobre minha testa despertou-me de uma bela soneca debaixo de uma frondosa jaboticabeira. Fiquei iradíssimo com a defecada do pássaro, pois em meu sonho, estava prestes a bater um acumulado de R$ 50.000,00, com trinta bolas cantadas na maior casa de bingo do país. Esperava a bola sete.

Passada a raiva e voltando à realidade, observei os pacientes, na maioria dependentes químicos que se encontravam na clínica que me acolheu para tratamento de minha dependência pelo jogo compulsivo ( ou patológico). Pensei cá com meus botões: — “Rapaz, nem dormindo você deixa o jogo de lado?”

Juntamente com uma década perdida, foram para o espaço, duas ou três famílias, apartamentos, carros, etc., dentro de um dos maiores centros de neuróticos existentes na atualidade — BINGOS ELETRÔNICOS.

Na realidade essas elegantes e chamativas casas, são extremamente rentáveis e vantajosas não só para os donos, mas também para farmacêuticos e proprietários de clínicas psiquiátricas, pois qualquer cérebro saudável, em poucos meses, com quatro ou cinco horas ouvindo — primeira pedra: sessenta e nove, meia nove, número dois, número noventa,...número cinco, etc. estará irremediavelmente comprometido. E não falando das diversas taquicardias que ocorrem durante o jogo quando está faltando apenas um número em sua cartela e o locutor canta todos, menos aquele que você está esperando.

Adrenalina pura!

— Mas que nada, hoje é meu dia. É já que acerto uma! — comenta um otimista na sala.

E a cada cinco minutos, nova partida.

— Sobra uma! — grita um dos vendedores — a última! Olha a premiada aqui! — insiste o jovem, pois sabe que se não vender a cartela, vai ter que desembolsar o valor da mesma aos patrões no final do turno.

Nova partida. É desligada aquela música estridente e o silêncio paira no ar. Só se ouve a voz excitante da locutora:

— Quarenta e sete, trinta e dois, vinte e quatro...

Após mais algumas bolas cantadas, alguém grita:

— LINHA! (Linha significa que o apostador preencheu em uma cartela, cinco números na mesma linha horizontal).

— “Rabuda”! — grita o obsceno jogador que também já estava na “boa” para preencher a linha. O desconhecido parceiro de mesa, num gesto de solidariedade, comenta:

— Esta vaca, é a senhora madame do “fulano de tal”. É sempre assim, essa MER... só sai pra quem “tá com muito”!

Agora imagine os adjetivos que lhe seriam atribuídos se essa distinta e ilustre senhora além da linha, batesse o bingo com até quarenta bolas cantadas, onde além do prêmio do bingo, ganharia um extra que seria o acumulado?

Mas seja lá quem for que acerta o bingo, lá vem o alegre e esperto garçom:

— Parabéns doutor! Vai um uisquinho aí? — ou — que tal um chopinho no mais alto capricho d’área?

O vendedor da cartela premiada ao revender para quem bateu o bingo, e se tiver intimidade com esse, já vai estipulando a gorjeta (“caixinha”).

Pobre de quem bateu e não deu a famigerada “caixinha”. Em segundos já será um jogador famoso no salão. Entre os vendedores, será conhecido como — “pata de vaca”, “corno”, “nhaca”, etc.

E o jogo continua.

E na área onde ocorrem os jogos efetuados através de computadores?

Nas rodadas especiais, as de prêmios maiores, é nos computadores que os “bons-da-boca”, disputam.

— Veja as primeiras duzentas séries — grita um velho conhecido jogador da casa. (Cada série é composta de seis cartelas).

— Me dá duas só! — diz um, que já deixou todo o dinheiro por ali.

Da mesa da locução ouve-se:

— Três mil e quinhentas cartelas vendidas. Prêmio para linha, 200 reais.

Prêmio para bingo, mil reais:

— Primeira pedra...

Com cinqüenta ou cinqüenta e duas bolas cantadas alguém, normalmente do computador grita o bingo.

— É um largo essa bicha! Esta é a frase mais ouvida no requintado salão apesar de um grande número de jogadores, preferirem agredir a mãe do ganhador, com a já conhecidíssima frase: — É um FDP (com todas letras). Os mais pudicos preferem a mãe do sortudo no pasto do que rodando bolsinha na Rua Riachuelo — “Filho-de-uma-vaca!”...

Com poucas horas de jogo os mais “depenados” buscam os conhecidos que estão com alguma sorte para emprestar “algum”, na esperança de recuperar o que já foi.

Cabisbaixa vai saindo do recinto a dona de casa que já prometeu milhares de vezes para o marido em abandonar o jogo, na porta esbarra no triste operário que deixou todo seu salário nesta tarde e agora já começa a pensar nos documentos que ele terá que apresentar no dia seguinte na financeira, para tomar de empréstimo o dinheiro perdido.

Com estes pensamentos voltei a refletir sobre a substância que o pássaro havia despejado na minha cabeça. Concluí, que matéria homônima muito semelhante habitava em abundância em meu cérebro, há anos.

Detenho meu passeio mental, para ver e ouvir, na pracinha ao lado da clínica, o pastor com a bíblia na mão, falar da salvação através do Mestre Jesus.

OBS: Somente em 1992 o jogo patológico, foi reconhecido, pela OMS – Organização Mundial de Saúde, como doença.

Na décima versão do CID – Classificação Internacional de Doenças – A rubrica F63.0 disserta sobre o JOGO PATOLÓGICO.

Este artigo foi escrito numa quinta-feira, 10 de Janeiro de 2003.

Foi transcrito no Jornal do Batel de Curitiba, edição de maio/2003 e está inserido no site www.drogasonline.com.br , em Artigos.

Luiz Celso de Matos
Enviado por Luiz Celso de Matos em 08/01/2006
Código do texto: T96121