A nota
Era apenas uma nota dentre tantas e tantas. Não era sustenida nem bemol. Era nota. Soava como soava e não reclamava. Por vezes durava o tempo do piscar os olhos, por vezes era quase demorada demais. Sabia-se nota e tão só em baião ou rock eletrônico entre valsas e tangos. Olhava-se e encarava-se nota diferente de todas as outras. Sentia-se desnecessária por vezes frente à melodia que quase não a procurava enquanto de outra forma, no avesso da melodia, martelavam-na tantas e tantas vezes num trabalho escravo de soar sem sentido. Vagava por instrumentos e bocas e já não se sentia sonora e desistiu de soar. Não houve quem entendesse seu silêncio sepulcral nas partituras desfazendo todas as músicas em um quase nada de murmúrio desafinado. Os salões fecharam. Os instrumentos secaram. As vozes calaram. Os rádios enferrujaram e anota abismada de todo o silêncio que se tomava por todos, achou-se de importância tão necessária que soou ditadora de sonoridades que lhe batiam continência a cada semitom desenfreado. E, de quando em quando, quando se ouviam melódicos rebeldes, a nota revirava-se em escala necessária e aniquilava a rebeldia soando instrumentos de sopro de versões mais necessárias que a original, matando os rebeldes de pouco numa prateleira de arquivo musical qualquer. Num repente sinfônico, onde a nota comandava o contraponto ritmado da batuta maestral, uma semicolcheia de sol quase lá destravou o si para que o fá soasse mi bemol mais alto que dó sustenido e ré natural, dissonou da corda do primeiro violino a encarar a nota de boca aberta que já não se via comandar as claves que revoltadas trocavam sinais quatro por três iniciando a revolta musical assolando a nota num canto qualquer no fim da melodia. No ato de baixar batuta exilaram a nota infeliz num mundo de quase nada onde ela por ela seria só, não teria som ou melodia. E a nota já sem ecos de existência fechou-se calando para sempre em eterna pausa no final da canção.