PEGADAS NO CORAÇÃO
Num sábado pela manhã caminhávamos na calçada em frente ao quartel onde o pai tinha servido. Era quase nove horas. Por um instante olhei para trás para me certificar da guarnição de nossos pais que nos seguiam de perto. O jovem casal dirigia-se à igreja com seus três filhos pequenos, uma menina de sete anos, um menino de cinco, quase seis, e o caçula com pouco mais de três. Com menos de trinta anos, o pai vestia uma fatiota escura muito alinhada, ornada de uma bela gravata enlaçada num colarinho alvo e bem alisado. A mãe espalhava suave perfume, seu o cabelo era bem armado de laquê e o rosto corado de pó confirmava a primavera de seus vinte e sete anos.
Respirei fundo admirando a cena. Pensando que nada podia ser mais perfeitamente confortante, congelei o instante, desfrutando da segurança de ver nosso pai logo atrás da gente abraçando nossa mãe com carinho e os dois orgulhosos falando de nós.
Foi esse o modelo de família que conheci primeiro e, enquanto desfrutava dessa experiência, assinalei que seria como essa a família que teria quando fosse grande. Num instante visualizei a mim e a meu irmão já grandes, jovens, belos e bem vestidos como nosso pai, andando pela rua de braços dados com nossas esposas resplandecentes, indo num sábado à casa da nossa admirável irmã para saborear um almoço em família, rodeados de nossos filhos tão bem vestidos e notavelmente educados.
Quando crianças, nossos sábados eram mesmo requintados e cheios de prazer. Apesar de pobres, éramos felizes. Com as tias na escolinha aprendíamos as maravilhas de Jesus, reencontrando também nossos amiguinhos mais preciosos. No culto divino acolhiam-nos tantos tios e tias e encantava-nos mais ainda ver o pai e a mãe em harmonioso dueto dividindo as vozes em tão belos hinos especiais. Quando a congregação cantava, admirado da maestria do irmão Mitank ao violino, meu coração se recolhia a tão doce aconchego, aproveitando a paz e a segurança desse momento indescritível. Muito mais me encava também ver nosso pai ao púlpito, pregando com tão eloqüentes palavras.
Passaram-se dezenove anos desde que aos quinze deixei a igreja achando que as moças religiosas eram sem graça. Queria conhecer as meninas e as coisas comuns, que eu pensava que seriam mais atraentes, liberais e satisfatórias. Entretanto, continuei sonhando que encontraria alguém a quem amaria muito, seríamos grandes amigos, casaríamos, teríamos filhos e formaríamos a família perfeita, como aquela que caminhava em frente ao velho quartel. Todavia, por causa da minha timidez aguda, antes dos vinte e um anos nem mesmo tive uma namorada que soubesse do nosso namoro. E pensava que estaria casado e teria filho nessa idade.
Após dezenove anos distante do mundo da igreja, tinha me casado com a mulher pela qual me apaixonei na primeira vez que vi, tendo percebido dias mais tarde que com ela quereria passar o resto da vida. De fato, estava certo de quanto a amava e por muito tempo a amei. Sobre ela depositei todos aqueles sonhos áureos, impregnados da primavera da minha infância, incrementados com o sonolento perfume da dedicação, paciência e aprendizado, ornados de companheirismo, compreensão e amor. Com ela fui feliz por seis anos.
Pensava que ao casar-se a pessoa compromete-se com o ser cativado, como disse a raposa ao Pequeno Príncipe, obrigando-se para com o bem-estar e felicidade do ser amado para sempre. Assim imaginei ao rever aquela cena do passado. Achava que as desavenças não eram páreo para a amizade, tolerância e paciência, tão simples para quem ama. Todavia, ao final daqueles dezenove anos distante das filosofias da igreja retornei derrotado para minha cidade natal, tendo descoberto que as pessoas pensam diferentes umas das outras, que interesses pessoais divergem e que, mesmo se não concordamos, ainda assim os acontecimentos seguem o curso determinado pelo pensamento comum.
Minha esposa não compartilhava do pensamento de que o casamento é uma relíquia, o amor é eterno e que essas coisas tidas por cafonas são importantes para a continuidade da humanidade – pensamentos tão ultrapassados aos olhos do mundo atual. Por isto não consegui sagrar-me herói da compreensão, mostrando para meu pai que podia contornar os percalços e manter uma relação.
Muitos pensamentos compartilhávamos, especialmente o de que os pais devem fazer grandes sacrifícios por seus filhos, como manter-se juntos e vencer os desgostos até tê-los criado. Sou filho de pais separados e sei quão caro nos custou a intolerância de nosso pai e sua busca por seu bem-estar individual. Minha esposa dizia que se tivéssemos filhos jamais se separaria. Do contrário, porém, se algum dia o amor terminasse não se sentiria comprometida com a relação, tampouco com a pessoa à sua mercê. Entretanto, para mim o amor não termina quando o prazer desaparece, pois é justamente no desprazer que se descobre o que é mesmo amor. O que desaparece é o que jamais foi amor, mas uma atração, uma simpatia, um desejo, um conforto, qualquer coisa que ao indivíduo agrada, que o faz querer estar com o outro, a quem, por isto, pensa que ama, porque a outra pessoa nele produz tal atração.
Na noite em que me confessei a ela, sob uma luz tênue à mesa de um bar num porão na cidade de Caxias do Sul contei-lhe meus sonhos mais caros. Pondo meu coração ao avesso, falei de uma família acolhida numa casa aconchegante – algo tão simples e fácil de ser arranjado. O pai, a mãe e os filhos, todos abraçados, acolhidos do frio, do vento e da chuva. Do lado de fora, os perigos, as desavenças, o descuido, o choro, mas nada que pudesse atingir a família amante no lado de dentro. Ela falou-me que esse também era seu sonho, um sonho que tinha se perdido quando sua mãe morreu havia dois anos, mas ela queria recuperá-lo. Achei que a conveniência encontrara sua própria conveniência, então nossos sonhos se casariam, completando-se perfeitamente.
Por seis anos fomos grandes amigos e cúmplices, andamos por todo lado provocando inveja em muita gente. Fizemos muitos planos e escolhemos até os nomes dos três filhos que teríamos. Entretanto, seis anos mais tarde eu voltava para minha terra natal tendo que encarar as pessoas e admitir que aquele casamento tão admirado terminara sem ao menos uma desculpa esfarrapada.
Ao final dos dez anos da separação, nos quais me debati como um náufrago tentando sobreviver a tantos pensamentos traiçoeiros, descobri que romantismo é o pensar dos que não foram contaminados pela cultura egocêntrica do mundo comum, onde os indivíduos querem ser a atração, lutam unicamente pelo prazer, satisfação e bem-estar pessoal. Por isto é tão difícil realizar o sonho da família da calçada do quartel. Por isto são tantas as separações entre os casais.
Na verdade, durante aqueles dezenove anos distante da filosofia da igreja eu tinha procurado água no deserto, querendo produzir amor com pessoas ensinadas que o mundo existe para o benefício de alguns e não de todos, sendo que para esses a conjunção entre os indivíduos se dá não para o benefício de ambos os lados, mas para o prazer daquele que consegue tirar mais vantagem. Quando eles não conseguem mais tirar vantagem entendem que o amor acabou.
Por vários anos procurei alguém como a amada que eu tinha perdido. Parecia que só ela pensava como eu, por isto fiz dela meu modelo. No início imaginei que voltaria logo, após descobrir que ninguém a trataria com a mesma amizade e respeito. Então eu a aceitaria como antes, mesmo com seu estranho pensamento sobre amor. Todavia, ela jamais voltou, tampouco alguma vez mandou notícia. Ao contrário, sua indiferença deixou claro quão insignificante fui.
Após voltar para a igreja, não encontrei entre as pessoas que, como eu, sonhavam com a família da calçada em frente ao quartel a mulher a quem eu amaria. Algumas pessoas tinham os atributos da amada de meus sonhos, mas em mim não viam a realização de seus ideais. Entretanto, segui vivendo, ao contrário do que parecia no início, quando imaginei que seria sufocado pela dor da separação. Todavia, o tempo foi reduzindo a dor, me ajudando a perceber o mundo ao meu redor.
Nos últimos tempos a tecnologia avançou muito. Na Internet segui à procura de alguém com quem formar a família congelada na calçada do velho quartel, que após 1974 deu lugar a uma biblioteca. Muitas pessoas que se enquadravam em meus sonhos e que tinham sonhos como os meus encontrei fora de meu alcance, em outros Estados. Há muitos encontros, porém, compareci, conhecendo pessoas que não eram bem como eu queria e que nem tinham pensamentos como os meus. Muito de minha alma expus, reduzindo aos poucos as exigências quanto à aparência, a personalidade, as filosofias e os pensamentos das pessoas para meu relacionamento eterno. Porém, nem assim encontrei minha amada, com quem formaria a família tão sonhada.
Passaram-se trinta e sete anos desde aquela manhã de sábado na calçada em frente ao quartel. O menino caçula daquele jovem casal já nem existe mais, tendo partido em 1995. No aspecto tecnológico, saímos do radinho de bolso a pilha para o telefone através de ondas de rádio em forma celular, com o qual se pode também tirar fotografias, ouvir rádio, assistir televisão, acessar a um arquivo mundial, além de mandar cartas e falar com as pessoas em todo o mundo. Passaram-se vinte e três anos desde o tempo em que imaginava que teria casado e teria o primeiro filho. Também se passaram quinze anos desde que, contra minha vontade e em nome de sua formatura na universidade, após um emaranhado de mentiras, minha primeira esposa abortou o filho que teríamos, do qual guardei por muito tempo a ecografia. Então, dentro de pouco tempo, finalmente nascerá Fernanda Rafaela, segundo o exame ultrasonográfico que fizemos há pouco tempo. Mas poderá ser Israel, caso o exame esteja errado e o bebê seja menino, que será tão amado quanto a Rafaela. E não nascerá de alguém a quem eu tenha procurado na Internet ou no mundo, tampouco de quem tenha me desprezado, apesar de minha paixão e dedicação, mas de alguém que, como eu, também sonhou construir uma família como a da calçada em frente ao quartel, seguindo às mesmas filosofias. Foi como aquela a família que primeiro ela conheceu, mas nossos rumos se desencontraram no início de nossas vidas, nos fazendo esperar tantos anos até que o destino nos colocou lado-a-lado, como deveria ter sido desde sempre. Percebemos, porém, que, se tivéssemos nos conhecido no início formaríamos aquela família ideal, que seria ainda sólida, seguindo unida para sempre. Todavia, já que não foi assim desde o início, faremos o melhor daqui para frente e daremos ao bebê que vai chegar a família eterna que ainda podemos edificar.
Wilson do Amaral