Só mais um quadro na exposição.
Mal conseguia ver teu rosto, encoberto em névoa e luzes coloridas e sons desconhecidos. Tudo era abstrato.
Até poderia se tornar uma pintura famosa exposta em Madri ou Londres, ou qualquer outra cidade do exterior que esconda a sua mediocridade nesse glamour de cinema. Ninguém lá se importava no não-ver, só ver um quadro neo-abstrato-surrealista. Naquele buraco, naquele abismo sujo do mundo, não era interesse de ninguém ver nada. Gravar rostos, identidade. Nomes. O que interessava era uma dose de irrealidade. E por isso todos afundavam em vícios. Bebida, drogas, sexo, música alta. E todas as coisas que inutilmente tentam te levar pra longe. Só que a realidade não é onde você está, é você. E ninguém pode sair de si, ninguém pode fugir de si mesmo. ¹
Te aproximas. Pega minha mão. E me puxa. Sem sorriso, sem palavra, sem olhar, sem nada. Nenhum sinal, só chegas, pega a mão e a puxa. E eu não resisto, não esboço reação. O normal era ao menos me questionar o que será que pretendias comigo. Mas não me pergunto nada. Minha mente fica limpa e acredito que mesmo que eu tentasse me questionar algo, seria inútil, já estava no piloto-automático.
Abres a porta, me empurra e então, me joga na cama. E tira-me as roupas, tira-me os medos, tira-me o pudor e todos os receios. Tira-me a sorte, tira-me o pavor, tira-me dor. Arranca o líquido que me preenchia e me afundava por dentro. E me joga seu corpo, seus músculos, me afoga em seu suor, me joga seus medos, joga seu não-pudor, joga a sorte, joga o pavor e a dor. E me joga o líquido que te preenchia e te afundava por dentro. E nos enrolamos, entrelaçamos, giramos, dançamos, rodopiamos, sacudimos, nos encontramos. Ou apenas... Transamos?
Então você levanta sem esboçar reação. Levantas? Meu deus, ainda tens essa força. E não me olhas e pega suas roupas e começas a se vestir. Tira do seu bolso e me taca vinte, trinta, trinta e cinco reais... Tanto faz.
Então eu lembro. E me questiono por que dar meu corpo e alma (à venda), por que oferecer esse amor a quem não quer, porque me envolver com todo homem que vem a procura do superficial, do usual, do contato.
É que vocês, homens, vocês não se abrem. Literalmente e poeticamente falando, vocês não tem as suas entranhas cutucadas. Vocês não têm que se abrir e deixar algo entrar e vomitar e sair simplesmente, virar as costas como se nada tivesse acontecido. Vocês não sabem o que essa noção de abandono. De se sentir completo e depois usado. É que a gente oferece o fundo, oferece tudo que tem dentro. E vocês oferecem apenas uma parte de si.
Mas, por que continuo fazendo isso? Esqueço que sou apenas uma prostituta, como todas as mulheres são. À venda por ilusões. E me apaixono por você, estranho que me procura todo dia. Me apaixono todo dia por estranhos. Porque sempre tanto faz, todos são iguais. Os braços que me entrelaçam sempre são os mesmos, a essência também. Vocês procuram algo pra preencher os seus próprios vazios, mas não conseguem. Porque não se abrem, porque não tem capacidade pra se deixar abrir e pra preencher totalmente algo. E ficamos todos solitários, ficamos todos atônicos e perplexos diante da nossa própria incompreensão.
E eu deitada nessa cama, fodida pelas mesmas picas, sentindo as mesmas coisas, entregando a alma e o corpo por trinta reais. Melhor me levantar, antes que ele perceba. Procuro minhas roupas pelos cantos desse quarto imundo. Cada peça em um canto do quarto. Ele nem me olha. E eu visto as roupas novamente, preciso repetir essa cena algumas vezes. A noite mal começou.
Todos os homens são capazes de tirar a roupa das mulheres, mas poucos as ajudam a se vestir. ² Porque vestir é reconstruir uma imagem, uma identidade. E nesse deserto de solidões medonhas, ninguém quer saber da identidade de ninguém.
Como num quadro famoso em algum salão de uma cidade glamorosa qualquer, você sai rapidamente e eu fico sentada na cama olhando pro dinheiro e pensando em tudo novamente. E então, um borrão me move a cara. E em uma pincelada, perco a minha identidade, se é que eu ainda tinha alguma. E o pincel confunde-se com faca. Escorre tinta vermelha. Acabou. Deus pintou um lindo quadro surrealista e lá vou pra exposição e me questionam o que sou.
E digo, eu sou a realidade do mundo. Borrada, incompreensível, solitária. Mas um bonito enfeite pra ser observada. Mas se vocês nem querem saber, pra que perguntam? Todos querem o seu próprio quadro, a sua própria solidão observando as solidões alheias.
¹ “Para onde vão os trens, meu pai? Para Mahal,Tami,para Camiri, espaços no mapa, e depois o pai ria: também para lugar nenhum, meu filho, tu podes ir e ainda que se mova o trem tu não te moves de ti” (Qadós, Hilda Hilst)
² Acho que esse pensamento é do: http://carpinejar.blogger.com.br