Alice caminhava lentamente pelas ruas molhadas e desertas.
Estava cansada após o longo dia de faxina pesada. Casa grande, três quartos e quintal com cachorros.
Não tinha nada contra animais, estava cansada de limpar fezes, lixo e sujeira de todos os tipos. Não suportava mais o odor azedo dos restos de comida nas pias entupidas de louça gordurosa, banheiros e ralos.

Aparentando bem mais que os vinte e cinco anos era a brasileira clandestina, sobrevivendo á margem da vida, sem direito a nada além dos produtos que corroíam os dedos das mãos grossas e ressecadas.
Seis anos sem ir ao médico ou dentista. Tomando aspirina para quase tudo, comendo macarrão instantâneo e sopa pronta. O corpo dolorido, as pernas pesadas, quatro lances de escada no prédio onde dividia acomodação. Todos os blocos eram iguais, um quarteirão inteiro identificado por placas pequenas com números e letras. No início perdia-se sempre.

Usar o metrô foi outro capítulo a parte. Tantas linhas e cores.
A gerente da firma acabou traçando um roteiro de clientes concentrado em dois bairros próximos. Apesar de muito confusa Alice era excelente faxineira e as patroas exigentes sempre pediam seus serviços.
Polia, limpava e esfregava com dedicação total, era muito humilde e educada. Perfeita.
A porta do apartamento estava aberta e Alice não deu um passo. Tinha medo de tudo. O pior pesadelo era ser presa, talvez torturada e finalmente deportada.
Perder o esforço de anos e voltar de mãos vazias para o Brasil. Algumas moças contaram histórias horríveis e Alice acreditou em todas. Vivia apavorada e só saía de casa para trabalhar.

O corredor silencioso do prédio no bairro de Astoria, Queens. A maioria de imigrantes tão anônimos quanto ela. Saíam e entravam como ratos. Furtivos e apressados. Nunca havia feito amizade alguma com vizinhos, suas únicas companhias eram as duas capixabas que conhecera na Agência de Empregadas e dividiam o apartamento sem intimidades.
Aquela porta aberta estava errada. Será que alguém havia invadido o lugar? E as outras moças? Já deveriam estar em casa.
Alice não conseguia dar um passo, o pavor aumentando, sem forças para chegar mais perto e acabar com o suspense.
A figura de Ana apareceu no batente, cabelos cheios de tinta e cara de sono:- Vai ficar aí até quando Alice? Apostei com a Ruth que você ia morrer congelada na escada.

- Não foi engraçado. Brincadeira boba

Alice atravessou a sala apressada, o quarto pequeno tinha um beliche e uma cama de casal, o armário estava caindo aos pedaços e elas resolveram reformar pintando cada porta de uma cor berrante. Feio e velho.
Um painel de cortiça ocupava a parede lateral com milhares de fotos. A maioria de parentes sorridentes e praias brasileiras.

Chorou, sentia-se vazia e sozinha. Saudades da família, da comida, dos amigos, da rua onde morava no subúrbio de Marechal Hermes:

- Oi amiga, abrimos a porta porque vimos você chegando da janela, foi uma brincadeira, não fique assim que estamos morrendo de remorsos. Venha para sala, estamos jantando. Fiz uma comidinha gostosa.

- Não obrigada. To cansada demais. Vou dormir um pouquinho.

Ana recebeu Ruth com o sorriso contido, o prato de macarronada no colo e a boca suja de molho de tomate:- Não disse para não brincar com a doidinha? Olha só o que você aprontou, vai ficar assim dias e dias.

- Não entendo Ruth, ela está aqui há mais tempo que nós, eu adoro esta vida, se fosse para viver em depressão voltava para casa.

- Você é deslumbrada, Alice é filha única e nunca vai se acostumar, quer juntar algum e voltar. Comprar apartamento, casar, ter filhos e morrer no Brasil.

- Sabe que ela nunca visitou o Central Park ou a estátua da Liberdade? Nunca foi ao Village ou Chinatown. Esta mulher não existe, é meio “abobada”, cinco anos enfiada dentro deste apartamento.

-  Eu quero é arrumar um gringo bonitão, sair por aí e virar americana

- Sei, enquanto isso ataca todos os “cucarachos” disponíveis e bonitões

- Quando eles descobrem que somos brasileiras ficam loucos, somos famosas e sou muito paquerada, que posso fazer?

- Juanito, Pedrito e José .Vai acabar casando com um cubano ou mexicano...mamacita

As amigas começaram a rir e logo depois faziam as unhas e davam os últimos retoques no visual antes de sair  para mais uma festa. 
Todo final de semana havia festa na casa de alguma amiga e eram convidadas. Esqueciam a dureza das faxinas dançando e namorando.

Alice nunca participava de nada. Ficava em casa lendo, dormindo ou assistindo algum filme dublado. A colônia brasileira espalhada no bairro mantinha as lojas abastecidas com filmes e produtos nacionais. Feijão preto e farinha de mesa eram fáceis de comprar.

Mal as moças saíram, Alice tomou um banho demorado. Debaixo da água sentiu-se mais calma e relaxada.
Enrolada no roupão felpudo escorregou no sofá antigo e cheio de almofadas. 
Pegou um pacote de biscoitos e ligou a tv. Não entendeu quase nada, ficou olhando as cenas de um filme antigo.
A dificuldade em aprender inglês foi o maior impedimento para que conseguisse algum emprego melhor.

Conformou-se com as faxinas, duas médias ou uma grande por dia. A agenda lotada e muitos extras em feriados ou férias.
No final do mês recebia muito mais que as duas colegas, não comprava nada além do necessário. 
Ano após ano nada mudava. Faxinas, baldes, desinfetantes e detergentes novos eram a única novidade em sua vida.

Não era feia nem bonita, uma moça magra e sem graça, cabelo castanho, rosto normal e comum. Sem atrativos. Nunca tinha tido um namorado e todo ano lamentava o dia de São Valentim. Os americanos adoravam comemorar o dia dos namorados. Enfeites, cartões, propagandas lindas. Para as solitárias como Alice, uma verdadeira tortura.
Solidão era sua única companheira. Lá fora Nova York brilhava em luzes e promessas. Quantas pessoas não estariam sonhando com a cidade mágica neste exato momento em que Alice só enxergava as sombras.

Tantas vezes não nos damos conta que a vida ofereceu a oportunidade rara e a desperdiçamos afogados em autocomiseração. Perdidos em dores cultivadas não nos permitimos conhecer pessoas, enxergar alegrias e soltar os laços que nos impedem de ir adiante.
Ruth e Ana retornaram quase ao amanhecer e encontraram o apartamento vazio. Alice havia partido. Um envelope com a parte do aluguel e um bilhete apressado de desculpas. Estava tão desesperada que juntou poucas roupas em uma mochila e deixou quase tudo para trás.

No aeroporto JFK Alice descobriu que os vôos para o Rio de Janeiro não estavam lotados. Preferiu comprar a passagem mais tarde, sabia que haveria problemas com o passaporte vencido. Adorou o clima das partidas e chegadas, ainda tinha o dia inteiro pela frente e não estava preocupada.
Sabia que nunca mais retornaria aos EUA. Teria o visto negado para sempre. Pouco se importou, sonhava com um mergulho em Copacabana e com as tardes mornas em companhia da família assistindo novelas e conversando amenidades.

Com o dinheiro poupado teria uma boa faxineira e nunca mais queria saber de limpar nada. Imaginou-se trocando a cor do cabelo em um bom salão de beleza e fazendo compras nas lojas do Shopping.
 Um carrinho novo para passear com os pais, viajar para o Nordeste...conhecer um pouco do Brasil. Riu deliciada imaginando um grande churrasco com os vizinhos e velhas amigas.
Resolveu preencher o tempo percorrendo todos os terminais observando as pessoas. Finalmente sentiu que havia encontrado seu caminho.
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 20/04/2008
Reeditado em 26/12/2018
Código do texto: T954285
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