Os pães de cevada

Cinco mil pessoas. Muita gente. No vilarejo em que vive, não passam de duas mil. Não cansa de admirar a concentração humana, são rostos variados de homens, mulheres e muitas crianças. Trazem consigo a expressão da dor e do sofrimento estampado em suas faces. O sorriso desdentado de alguns, as rugas de outros, e, o semblante cansado denuncia o rigor que essas vidas parecem passar.

Foram dois dias até chegar. Durante o dia caminhou sob um sol escaldante pela árida paisagem. A noite dormiu ao relento, tendo as estrelas como teto. A pequena trouxa que carregava, continha os pães, que, lhe serviriam de sustento durante o trajeto de ida, e, se o “Senhor” assim o permitisse também no de volta.

Os pães! Há os pães... Eram deliciosos pães de cevada, os quais foram confeccionados carinhosamente pela mãe. Lembrou-se da afável maneira com que ela, sua progenitora, alocara os pães em sua pequena trouxa de viagem enquanto o advertia:

- Não esqueça de encher a botija de água, para não passar sede, por conta dos grandes trechos onde possa não haver água disponível.

Mas, a água, não lhe faltou em momento algum, aliás, a própria água fora o percurso final de sua longa viagem.

A pequena embarcação estava ainda ancorada em um improvisado trapiche a margem do rio. Os dois pescadores que se encontravam dentro do pequeno barco, lamentavam o infortúnio da manha improdutiva apontando para uma pequena porção de peixes, os quais ainda agonizavam ao fundo da rede. Interrompeu o dialogo entre os pescadores e perguntou a eles se sabiam a direção que havia tomado o tal “Homem que curava”.

- Ele foi para o sul, seguindo o curso do rio, em direção ao grande lago – respondeu-lhe um dos pescadores.

Antes que pudesse agradecer, o segundo pescador ofereceu-lhe carona, pois, estavam igualmente descendo o rio. Agradeceu a oferta e falou aos homens que não teria como pagar-lhes pelo transporte, explicou que não trazia consigo valor de nenhuma espécie.

- Não te incomode com isso meu rapaz – falou um dos homens – A sua companhia nos será uma bela paga.

Ele assentiu com a cabeça e acanhadamente adentrou a embarcação. Ao sentar-se procurava esconder as chagas que lhe consumia uma das mãos. Tinha vergonha, medo da rejeição, da ojeriza que as suas feridas causavam as outras pessoas.

Os pescadores embora houvessem percebido as chagas, fizeram não se importar. Infelizmente a doença era comum naquela região.

O vento balançava caprichosamente o cabelo dos três tripulantes, atenuando um pouco o forte calor que fazia ao final daquela manha. Era quase meio dia, e, o percebeu pela fisionomia dos companheiros, que aqueles homens deveriam estar a um bom tempo sem comer. Sem nada falar, abriu a pequena trouxa sobre o chão do barco, deixando a mostra os pães de cevada, que tão gentilmente a mãe ali depositara. Não houve necessidade de palavras, o olhar de generosidade fora o suficiente. A aceitação também silenciosa teve a breve companhia de um sorriso de gratidão nos cansado rostos.

O silêncio foi rompido por uma pequena prece, que antecedeu a refeição:

- “Senhor”- ouviu-se a voz de um dos pescadores, que continuou – graças te damos por este alimento, fruto da terra e do trabalho do homem, que assim seja.

Comeram em silêncio, dois pães cada, sobraram ainda na trouxa mais seis pães de cevada. Insistiu ele, o rapaz, para que os anfitriões comessem mais. Mas, eles de pronto lhe responderam:

- Meu bom menino, os dias são de grande fome por estes lados, e, bem sabemos que você vem de longe e tem que retornar para sua casa, já foi em demasia generoso para conosco, agora, poupe este alimento para que não lhe falte por ocasião da sua volta. Vai precisar de energia. Será longa a sua caminhada - ele apenas sorriu e fechou a trouxa, guardando a remanescente meia dúzia de pães.

Já no grande lago, avistou a grande multidão que seguia àquele homem do qual ele ouvira falar, e, que poderia curar-lhe as feridas.

A embarcação aportou suavemente em um pequeno estaleiro. Antes de despedir-se dos colegas da curta viagem, um dos pescadores apanhou dois pequenos peixes e ofereceu-lhe. Tentou recusar, pois, sabia ele, que, a fome era grande naquela região, e, embora pequenos, os peixes poderiam fazer falta as famílias dos pobres e desafortunados pescadores.

- Por favor, meu bom menino- suplicava-lhe um dos pescadores – não nos prive de demonstrar-lhe a nossa gratidão ao bem que sua companhia nos fez.

Ele abriu um largo sorriso, apanhou os pequenos peixes e depositou-os junto aos pães.Despediu-se dos pescadores agitando alegremente as mãos. Esqueceu por um instante as feridas.

Não lembrava de ter visto tanta gente junta antes. Era um lugar deserto que margeava o grande lago, mas aquela paisagem costumeiramente deserta estava agora repleta por uma infinidade de rostos, vindos de varias aldeias circunvizinhas. Percebeu que não era o único com a doença, que tanto o envergonhava, notou também varias outras enfermidades; pessoas que não podiam caminhar, algumas que não enxergavam. O que mais chamara sua atenção eram os olhares que refletiam algo chamado “esperança”.

Ao seguir o curso da multidão, avistou um lugar alto, no cume de um monte. Imaginou que se o “Homem que curava” escolhesse um lugar para falar a todos, seria àquele o lugar. Apressou-se em chegar ao cume do monte desviando habilmente das pessoas em seu caminho. Quando chegou próximo ao cume, achou um lugar que lhe pareceu agradável. Sentou-se. A respiração lhe estava ofegante, mas ele pouco se importava consigo mesmo.

Estava absorto a contemplar aquele mosaico humano, que se formava frente ao seu minucioso olhar. Homens, mulheres e crianças. Crianças. Ao atentar para as crianças, notou que muitas padeciam das mais variadas doenças e deformidades. Uma dessas crianças em especial lhe chamou a atenção. Estando ele a poucos passos da referida criança. Observou ser um menino de pouca idade, talvez não mais que dois anos. Estava deitado de bruços as pernas finas em demasia lembravam frágeis gravetos. Havia uma deformidade na coluna a qual formava uma pelota na região lombar e que tinha a dimensão pouco menor que a cabeça daquele menino. Aquela cena causou-lhe uma profunda comoção, como poderia viver aquele menino em tempos tão difíceis e de tanta fome. Questionou-se, se aquele menino não estaria com fome, como estava a grande multidão, esqueceu-se da advertência dos pescadores sugerindo prudência, que, teria uma longa jornada de retorno. Movido por uma inexplicável compaixão, pegou um dos pães que estava em sua bagagem e caminhou em direção ao menino.

Ao aproximar-se, olhou para o homem que estava sentado junto ao menino acariciando os finos cabelos do pequeno enfermo. Não falou nada, olhou para o homem e estendeu-lhe a mão sã na qual se encontrava um pão de cevada. O homem fez uma pausa no carinho que fazia na criança. Olhou para ele com gratidão, engolindo em seco e não conseguiu conter uma lágrima que desceu lentamente pelo seu enrugado rosto. Ele igualmente não conteve as lágrimas ao observar que o menino embora faminto, pouca força tivesse para mastigar o alimento.

Sentou-se novamente em seu eleito lugar e continuou a contemplar a multidão. “Os cinco pães e os pequenos peixes lhe seriam mais que suficiente” – pensou.

A multidão tomava conta do lugar, desde as margens do grande lago até o topo do monte. Em um determinado momento ele avistou um pequeno grupo que vinha subindo o monte abrindo passagem através da multidão. Tentou enxergar o “Homem que curava” mas, no pequeno grupo não conseguia distingui-lo dos demais, continuou sua observação pacientemente,sabia que no momento oportuno ele o veria. Não demorou muito e ele finalmente conseguiu identifica-lo. A multidão o apertava, tocava em suas vestes e ele pacientemente atendia a todos que vinham até ele, impondo as mãos e proferindo belas e breves palavras.

O pequeno grupo chegou apos um certo tempo ao cume do monte e a multidão em pé esperava ter com ele, o "Homem que curava". Alguns do que o acompanhavam começaram a debater entre si, estando o rapaz razoavelmente próximo ao grupo, percebeu que ,o " Homem que curava" estava preocupado com a multidão.

Já era quase final do dia e arrazoavam entre si que as pessoas estavam famintas. Aproximando-se um pouco mais o rapaz ouviu que intecionavam alimentar a multidão.

- Aonde compraremos pão, para estes comerem? - Questionou o "Homem que curava".

- Duzentos dinheiros de pão não lhes bastarão, para que cada um deles tome um pouco - respondeu um dos seus seguidores.

Novamente veio a ele, o rapaz, o desejo de compartilhar o pouco que tinha. Estando ele proximo aos homens que discutiam, solicitou a atenção de um deles. Era um jovem como ele, e, pela sua observação percebeu que o chamavam de André.

- André!

O jovem seguidor ao ouvir seu nome virou-se a procura daquele que o chamava. Viu um menino acanhado, cabisbaixo, tinha as vestes tão espoliadas quanto a mão que tentava esconder. Na outra mão notou que segurava uma pequena trouxa.

- O que quer rapaz? Não ves que estamos tentando uma solução para atender a fome desta imensidão de pessoas?

- É justamente sobre isso que gostaria de falar-lhe,- fez uma pausa, e abrindo a trouxa que carregava prosseguiu - sei que é pouco, mas tenho aqui comigo estes peixinhos e alguns pães, e, gostaria de contribuir oferecendo o pouco que tenho para compartilhar com os demais.

André riu-se por um momento- que seria àquela insignificante quantia de alimento para milhares de pessoas?

Mas, movido de profunda emoção ante ao humilde e generoso ato do pobre menino André assentiu com um sorriso e apanhando os alimentos voltou-se para o seu lider e exclamou:

- Senhor, está aqui um rapaz que tem cinco pães de cevada e dois peixinhos; mas que é isto para tantos?

- Mande assentar os homens - ordenou o lider.

Havia muita relva naquele lugar e o rapaz viu assentarem-se, pois, os homens em numero de quase cinco mil.

O lider, o " Homem que curava", tomou os pães de cevada - aqueles da mesma porção que sua mãe tão carinhosamente preparara, os mesmos pães que o pescador pela manha havia dado graças- e havendo dado graças agora, repartiu-os pelos discípulos, e os discipulos pelos que estavam assentados; e igualmente também os peixes, tanto quantos estes queriam.

E, quando estavam saciados, disse aos seus discípulos:

-Recolham os pedaços que sobraram, para que nada se perca. Recolheram-nos, pois, e encheram doze cestos de pedaços dos cinco pães de cevada.

André que carregava um dos doze cestos, aproximou-se do rapaz e em meio a um largo sorriso disse:

- Toma meu bem aventurado, pega o quanto queira para que não te falte nada por ocasião do seu retorno ao lar.

O rapaz apanhou uma quantia de pães a qual não quis nem contar e colocou-os na trouxa.

- Vai-te em paz!- Disse André ao despedir-se.

O rapaz pos a trouxa nas costas e procurava ver o lider de André, o "Homem que curava", mas este havia retirado-se, pois, a multidão tentava arrebatá-lo querendo fazer dele rei. Avistou ao longe aquela criança a qual tinha uma pelota na coluna, estava ao colo do pai, sorriu e acenou alegremente para eles, que retribuiram a saudação. Ficou ainda um tempo a acenar solitário, mas, olhando para a própria mão. Aquela mão que ele tanto escondera, estava agora bem a mostra de todos. Ele não sabia como, mas, as feridas ali não mais estavam. Estava limpa, estava curada.

Desceu o monte em direção ao grande lago, o vento soprava-lhe a face, o sol estava se pondo e o dia chegara ao fim.