sacrifício de amor
SACRIFÍCIO DE AMOR
por Francisco Coimbra
«"Quando uma pessoa ama a Arte que pratica, sacrifício algum lhe parece exagerado"».
Em boa verdade, esta, a verdade, não deve ser para aqui chamada. Tudo o que vou escrever é literatura, nada disto se passou. Mas tem tal força a literatura que ninguém acreditará ser mentira, para poder gozar a beleza da narrativa, a sua verdade.
É pois verdade tudo o que vou contar e, se pessoas e factos nada têm a ver, ou haver, com os personagens desta história, isso se deve a uma coincidência rara tão habitual: eu faço de personagem e fico sozinho acompanhado por uma musa que respira e me usa, abusa e se quer gozada.
Até aqui tudo simples e natural, o mais conforme possível com aquilo que geralmente se quer: usufruir do usufruto que é fruto duma proximidade e entrega à qual, à falta de designação mais precisa, se precisa chamar uma relação de amor ou amorosa. Ela é a minha musa, eu o seu prosador!
Agora vejam qual não é o drama de tudo isto, se quiser contar a história da nossa vida, tenho de lhe dar um fim. Pensem e verifiquem, não há volta a dar!... Posso contar como acordamos, comemos, vivemos, dormimos e procurar deixá-la ao acordar, a comer, numa outra qualquer ocupação do viver, a dormir?
Em situação alguma se abandona uma história sem a acabar, dando-lhe um Fim: casou com a sua musa, foram felizes para sempre... Pode ser estranho mas a estranheza é inata à vida, nasce com ela, como nós a vivemos. Nunca conseguiria acabar de relatar a minha vida com qualquer musa, sem acabar essa vida que prescreve.
Fácil recorrer, direi mesmo, desejável recorrer, à mais completa banalidade. Procurar o assombro de ver os corpo numa nitidez sem sombras, olhá-los no meio-dia da incidência da luz, entregá-los aos dias cinzentos sem Sol. Nem deste modo soluciono a questão que trouxe, sobre as consequências de dar fim a uma história.
Não terei andado nem um milímetro para mais perto duma solução, continuo a considerar que a mesma não existe. Nunca poderei contar a minha relação com a minha musa sem, ao terminar o texto, a ter representado de forma parcelar, remetendo para... uma história. Que mal é que isto pode ter?
O mal é este, quando acabar este texto terei posto em palavras uma relação, terei falado dela e vou interrompê-la. De certo modo vou acabá-la, mesmo se aspirando, desejando, afirmando querer continuá-la. Quanto à forçosa ruptura dum final, à existência sempre presente desse Fim, é o drama!...
Ora, não querendo terminar a minha relação com a minha musa, pensei como seria se me matasse no Fim do texto. Iria deste modo resolver o estranho paradoxo, a estranheza?... Desde que me conheço, sempre pensei que a solução da vida é a morte. Tão completa e definitiva que... não tem serventia para a vida enquanto vida!
Cheguei onde queria, à inadiável vontade, agora aliada à necessidade de falar da citação inicial. Há frases, por vezes belíssimas, quantas vezes fora do habitual, que temos a certeza de já terem sido ditas ou escritas. No caso desta não tenho qualquer dúvida, transcrevia como a vejo e li, faz parte dum conto de O’Henry com o título que transportei para este.
Não sei se é uma transcrição, se representa uma ideia, se é uma frase que escreveu na ocasião em que escreveu ou já tinha escrito antes. Para não me separar da minha musa o que seria capaz de fazer? Devo-vos dizer que O’Henry escreveu logo no inicio do seu conto, depois da frase inicial:
«É esta a nossa premissa. A presente história alcançará uma conclusão dela, demonstrando simultaneamente a falsidade da citada premissa.»
Agora pergunto-me, numa situação destas como saberá o leitor se existe ou existiu um O’Henry? Acreditem, às vezes é bom fazer férias longe da musa: não acreditem!
{Quem souber de O’Henry mais do que eu, agradeço que se pronuncie, para lá da manifesta cultura literária, terá uma acção solidária dando a conhecer um autor sobre o qual me limito a ter conhecimento dum conto lido... e mais não disse.
Às iniciais, todas com nome: LFV – Luis Fernando Veríssimo, LFT - Lygia Fagundes Telles, RF - Rubem Fonseca, FG - Ferreira Gullar, ZV - Zuenir Ventura, acrescentei agora um nome que nem saberia pôr em iniciais: O’H.?
Perceptível fica ter escrito este escrito depois da última sequência de contos que numerei de 1 a 5, em véspera do último Natal.}