No rodapé da nota
Na minúscula nota de rodapé no rótulo do pequeno frasco passou despercebido o destaque em negrito “cuidado”. A penumbra de inverno caminhava lado a lado com o tempo frio. Fria também estava a vida. Dispensou o conta-gotas e a posologia. Até a indicação. Ingeriu. Nos lábios um sabor amargo. Percorria internos caminhos. Um bater renitente do relógio incomodava e marcava noite alta. Gosto ruim acusava o palato. Algo estranho. O visível lhe escapava em flash, as mãos na busca do tato que lhe evadia, sensações abstratas, móveis em movimento giratório. Girava a cama, o corpo, o tudo. Suor gélido embebia os lençóis rendados. A indiferença se aproximava, emoções se desfocavam em gradualidade expressiva. Inexpressivos movimentos. Buscava ânimo para uma reação. Nada! Lentidão, sonolência, demudado o rosto pálido. Transfiguração. Viaja por caminhos novos, desconhecidos, paisagens floridas, águas límpidas. Cosmos de interrogações. Profundidade de mundo invisível. Sonhos irreais. Na face, marca de desprendimento de alma, de parada obrigatória. Não decifrava mais os parcos sinais de emoções que lhe restavam. Fugiam em via única. Busca uma aterrissagem da consciência. Impossível! Decola em curvas sinuosas, tortuosas. Vara vento, decepa tempo, debate na busca de um retorno cônscio, rápido. Em vão. Mente desgovernada. Navega entre estrelas sem rimas e céus de nuvens brancas, esgarçadas. Mergulha nas águas poéticas do inconsciente. Até no fogo pênfigo das profundezas da terra. Voa como sereia encantada de desenho animado, arremeda cometa em queda livre. Quase a se acostumar com o estado de inconsciência profunda.
Depois de um longo silêncio de três dias, ilhada num mundo diferente, conseguiu aterrissar, captou alguns vocábulos mesmo que só para si. Os lábios retesados, cerrados, resguardavam os sons de palavras sem nexo. Sufocava. Emoções refreadas, grande inquietude a apertar-lhe o coração. Tentou novamente, com mais calma, alcançar a fala, buscar movimentos mais ágeis.
Alívio! Ouviu o bater descompassado do seu coração. Murmúrios e soluços contidos vagavam. Abriu os olhos. Muitos olhares em sua volta, repletos de súplicas, de indagações. Indagações que ela ainda não sabia responder. Ainda não lembrava ao certo do que ocorrera. O que poderia ter acontecido? Pensou em silêncio e não quis respostas para suas dúvidas. Decidiu não pensar em nada. Deixou-se ficar assim, nas incertezas daquela linguagem indecifrável, silenciosa. Uma lágrima esparramou sua cria sobre a face. Estava viva e queria viver. Sempre quis. Isto lhe bastava.
Juraci de Oliveira Chaves
Pirapora MG
www.jurainverso.kit.net