CINZAS

(Conto premiado com a MEDALHA DE PARTICIPAÇÃO ESPECIAL no II Concurso Nacional de Literatura Arti-manhas - PRÊMIO LIMA BARRETO)

Leninha caminhava em silêncio, trazendo seu velho pai pelas mãos. Tal qual nos últimos dezenove anos, silêncio era tudo o que existia naquela relação tumultuada entre eles, seres tão parecidos em seus defeitos quanto diferentes em suas virtudes.

Caminhavam pela praia, em direção ao pequeno pier de madeira que tão boas lembranças da infância lhe trazia, tempos felizes de cumplicidade e sorrisos, antes que a relação entre os dois se transformasse em cinzas.

Recordava como se fosse ontem o dia em que trocara a última palavra com o pai: foi num domingo pela manhã, e ele, ao descobrir que ela e o namorado haviam dormido juntos, não pensara duas vezes ao disparar seu ultimato:

- Enquanto morar sob o meu teto e se alimentar da minha comida, você vai fazer o que eu disser. Não quero saber de pouca vergonha dentro da minha casa. Também não criei filha para ser uma... uma... Vagabunda!

Aquela palavra entrou em sua alma e fez um estrago profundo. Quem ele pensava que era para chamá-la de vagabunda? Só porque ela havia decidido se entregar ao homem que amava, ele não tinha o direito tratá-la daquela forma tão dura. Decidiu que já era tempo de cuidar de si, não queria que um velho com ideias atrasadas dirigisse sua vida em troca de um teto e três refeições diárias. Aos dezessete anos, sentia-se dona do próprio nariz. No mesmo dia saiu de casa, levando apenas a roupa do corpo, tendo por trilha sonora o choro da mãe e a completa indiferença do pai. Naquele dia, o grande amor que sentia por ele deu o que parecia ser o último suspiro.

Mudou-se para o Rio de Janeiro, batalhou, correu atrás do seu destino. Algumas vezes, no silêncio da noite, recordava-se dos dias felizes ao lado da família e chorava de saudade. Outras, quando a situação era desesperadora e a obrigava a passar necessidade, chegava a cogitar a volta para casa, o colo da mãe, o abraço emocionado do pai... Mas o sonho terminava quando relembrava as palavras duras naquela manhã longínqua de domingo:

- Eu não criei filha para ser uma vagabunda!...

Engolia o choro, distraía a fome e determinava-se a sair daquela situação, pagasse o preço que tivesse que pagar. E não foi barato. Leninha literalmente, comeu o pão que o diabo amassou. Teve que fazer coisas das quais se envergonhava até em pensar, tudo para não ter que retornar com o rabo entre as pernas, pedindo perdão e admitindo que estivera errada todo o tempo. Não, ela não seria mais um filho pródigo a capitular diante das dificuldades e admitir a derrota. Havia dentro dela uma força, uma vontade de conquistar seu espaço e mostrar ao pai que o seu valor era muito maior do que ele podia supor.

- "Eu não sou uma vagabunda, pai, você vai ver. Você ainda vai engolir tudo o que me falou".

Voltou ao presente, sentindo uma ardência incomum nos olhos, coisa que não sentia desde a infância, quando se machucava e o pai vinha com o vidro de mercúrio para desinfetar a ferida. Lembrava do seu choro fingido, ela sabia que não arderia, mas adorava quando o pai a pegava no colo e assoprava, enquando falava palavras tranquilizadoras:

- Calma, meu bem, já vai passar!...

E ela então começava a sorrir, criança arteira e feliz... Ah, tempos inesquecíveis, antes que tudo virasse cinzas...

Olhou para ele, procurando enxergar o mesmo amor daqueles anos perdidos na memória, mas não conseguiu. Talvez ele também estivesse sentindo vontade de chorar.

- Sabe, pai... - conseguiu finalmente dizer - Tudo o que eu fiz, todos esses anos... eu... Eu só queria que você sentisse orgulho em ser meu pai.

Ele continuava em silêncio. Talvez fosse muito tarde para o perdão que ela não ousava pedir.

- Você ainda está zangado comigo?

As lágrimas escorreram pelo seu rosto, águas de um rio represado por longos anos. Por que ele permitia que ela chorasse sem dizer uma única palavra? Parecia tão distante, apesar de caminharem lado a lado... Talvez relembrasse os dias difíceis que tiveram, então ela continuou a chorar em silêncio enquanto aproximavam-se do pier. As recordações vinham como ondas que quebravam mansamente no cais da memória.

Quando finalmente sua sorte mudou, graças ao seu empenho e determinação, sentiu-se uma vencedora. Fez questão de enviar o convite da formatura no nome da mãe. Ele saberia que ela vencera, que era agora a Doutora Marilene, mas saberia também que nada significava para ela. Pobre Leninha!... Na sua ânsia de vingança, nem imaginava o orgulho do velho pai, que mesmo deixado de lado fazia questão de mostrar a todos os amigos o convite da formatura, de como sua Leninha, aquela mesma, a menina de tranças que quando pequena andava com seu ursinho de pelúcia no colo, de mãos dadas com ele pelas ruas da cidadezinha, havia se transformado na Doutora Marilene, advogada formada nas letras da Lei...

E os anos continuaram a passar sem que a dureza do seu coração se diluísse. Esporádicamente mandava notícias, sempre no nome da mãe: seu casamento com um rico industrial, o nascimento do seu filho primogênito, os casos que defendera e obtivera vitória, a chegada do segundo filho. A mãe sempre respondia dizendo que todos estavam bem, mas sem citar diretamente o pai, até o dia em que recebeu uma carta que dizia simplesmente:

"Venha urgente, seu pai está doente."

Não atendeu imediatamente ao chamado. Não porque não pudesse. Sabia que o pai era uma fortaleza de saúde, não seria uma gripe qualquer que o colocaria a nocaute. Protelou ao máximo a volta, teve medo de não saber como agir numa situação como aquela. Os anos de afastamento haviam sedimentado nela a ideia de que o pai era um homem duro e sem coração. Leninha não sabia, mas estava se descrevendo na figura do pai.

- Eu não tinha ideia de que era tão grave, pai!... - ela olhava para ele, agora estavam parados no ponto mais afastado do pier, onde as ondas quebravam contra o pequeno cais improvisado e o vento trazia ecos felizes de um tempo que não voltaria mais. - Me perdoa, por todos esses anos de silêncio!... Me perdoa, pai. Eu te amo tanto, tanto...

Ela o abraçou como há muito tempo não fazia, e ficou assim, abraçada a ele, numa vã tentativa de recuperar todos os anos que a raiva e o rancor haviam consumido. Mas sentiu-se leve com aquela confissão, era como se uma pedra enorme tivesse sido retirada do seu coração. Ela estava livre.

Só então teve coragem para abrir a tampa do pequeno vidro e deixar que as cinzas de seu pai fossem espalhadas pelo vento no imenso oceano azul do perdão.