Fraternidade
_ E agora, Rick? Como é que a gente sai daqui?
O Maverick patinava, urrava, derrapava no barro.
O vidro ainda embaçado pela respiração quente de há pouco e a mata espessa não deixavam ver de que lado brilhava as luzes da cidade. O susto não deixava sombra dos tórridos momentos vividos ali.
Haviam saído já há tempo e precisavam voltar rápido ou não teriam o álibe da missa das 7:00h.
Foi então que Rick, aflito e definitivamente convencido de que nada tiraria o carro dali, teve uma idéia.
O negócio era pôr o pé na estrada. Na cidade, cada um para o seu lado e a sua idéia tomaria forma.
_ Maldito salto! Enterra no barro e não me deixa andar direito!
_ Tira o sapato, tonta! Onde já se viu querer bancar a madame nessa biboca! Só você!
Assim foram jogando barro no romantismo de minutos atrás. Trocavam farpas na sinuosidade do caminho, no sem jeito da situação e na loucura de contar apenas com o tempo da missa.
O carro foi amaldiçoado, humilhado, magoando os brios do capataz.
_ E você que anda a pé? Melhor ter o “tufão” que andar de ônibus que nem você!
Enfim, chegaram a Batatais.
Passaram pelo Pau do Urubu e viram os homens já batendo ponto nos botecos, jogando snooker e conversa fora, a padaria vazia onde a moça debruçava desanimada no balcão, o burburinho dos moleques jogando bola no ginásio do bairro.
_ Agora é melhor eu ir por baixo e você seguir pelo centro, assim ninguém desconfia.
Ela foi em frente, e ele virou na avenida da delegacia.
Parou na balaustra de cimento e repetiu mentalmente tudo que ia dizer.
Ia dar certo, pensou...
Entrou.
Demonstrava cansaço e o suor escorria pelo rosto e pelo corpo deixando duas enormes manchas redondas em baixo dos braços da camisa vermelha.
_ Boa noite!
_ É. O que é que manda?
_ O delegado está? Eu vim prestar queixa; roubaram o meu carro.
_ Ele volta logo do jantar, mas pode ser comigo mesmo.
Afastou a cadeira tosca e sebosa em que estava, destacou de um bloco um papel, procurou por todo lado uma caneta. Nada!
_ Você tem uma caneta aí? Essa delegacia parece um poço, tudo que é caneta some como se aqui tivesse um buraco negro!
Rick coçou o bolso da camisa e da calça:
_ Ah, deixei no carro a caneta...
O investigador olhou firme para ele e voltou a procurar uma caneta.
_ Nó tamos fú aqui, nem caneta o governo dá pra gente poder trabalhar. Até o papel higiênico eu tô trazendo de casa, acredita?
Andou pelo corredor até a sala do delegado e finalmente voltou com uma caneta.
Rick esperava tentando aparentar indignação.
_ Não acredito que roubaram o meu tufão, cara! Que desgraça!
O escrivão espetou a caneta na dobra da orelha, sentou na máquina de escrever, rodou o papel na bobina que fazia um barulho de matraca e começou a preencher o B.O.
_ Como é seu nome?
_ Ricardo Pereira Silva.
_ Endereço.
_ Eu moro no Vichi; Rua Diogo Asdrúbal, número 129, casa 2.
_ CIC e RG.
_ Estão aqui ó.
_ Profissão?
_ Eu cuido dos cavalos de corrida da fazenda do Vininha Guerra. Sou capataz lá.
Marca do carro?
_ Maverick, ano 72, amarelo e preto. Duas portas, olha o documento aqui...
_Hum...
_ Alguma coisa diferente no carro, uma particularidade?
_ Tem um amassado na porta da direita e está sem pintura na trazeira, só na massa plástica.
A máquina de escrever Olivette continuava estalando cadenciada...
_ Certo.
_ Onde é que roubaram o carro?
_ Perto do Posto São Paulo, eu parei lá para pegar um vídeo para assistir com a esposa; até peguei um filmão e quando voltei já tinha sumido o carro.
_ Tinha alguém com você?
_ Nããão, eu estava sozinho mesmo.
_ Quem mais viu você lá?
_ Ah... isso eu não sei não...
_ Que hora que era?
_ Era mais ou menos 20:30h.
Nesse momento o delegado chegou. Arrastava cansado o bico da botina Jardinópolis, suarento, calça volteando a barriga enorme e a camisa desabotoada até o peito, deixando ver além do tufo negro de pelos, um cordão de ouro grosso com um Jesus Cristo pendendo do peito gordo.
_ Boa noite!
_ Boa noite, doutor.
_ Que é que foi agora, Jasão?
_ O moço aqui, veio dar queixa do carro roubado.
_ É?
O tom de voz enfastiada saia sem vontade nenhuma de resposta.
Rick então se animou a continuar a breve explicação do escrivão:
_ Então doutor, roubaram o meu carro lá no posto São Paulo e eu vim aqui para dar queixa. Entrei na locadora do Aguinaldo e quando voltei para ir para casa, nem sombra do carro!
_ Jasão, a viatura está na rua? Manda um rádio para o Zé Patrola dar uma olhada por lá.
Jasão parou a datilografia sincopada e passou o rádio:
_ Atento Zé, atento Zé...
_ Positivo, operante!
_ Zé, dá um pulo lá no posto São Paulo, furtaram um mavericão amarelo lá, verifica. Pergunta se por aí alguém viu o Rick do Vininha no posto ou na locadora.
_ Positivo.
O delegado então puxou conversa.
_ É, nem em cidade pequena a gente tem sossego mais! Antes isso era coisa só de cidade grande!
Então, doutor...
Dez minutos depois, o Zé Patrola chama:
_ Atento Jasão, atento Jasão, você está copiando bem?
_ Fala Zé!
_ Diz para o doutor delegado que eu estou com a viatura aqui no posto. Fui até a locadora, mas eles não abriram hoje. Aqui o Tonim frentista falou que não viu o Rick hoje não, mas lembra de ele ter abastecido o carro hoje na hora do almoço. Copiou Jasão?
O escrivão nem precisou chamar o delegado, pois ele havia ouvido tudo!
O bacharel pigarreou, meneou com a cabeça para que Rick o acompanhasse até a sua sala... Chamou Jasão também.
_ ÔÔÔ seo Ricardo, (olhou o boletim de ocorrências e continuou): Ô seo Ricardo Pereira Silva, o senhor está querendo brincar comigo é? Vamos começar de novo a história e agora o senhor vai contar direitinho, lembrando tudinho, não vai?
O tom ameaçador fez Rick engolir duro, uma saliva seca que descia como um tijolo goela abaixo...
_ É melhor lembrar como foi rapaz, ou perco a paciência num instante...
_ Foi do jeito que falei doutor, eu juro!
O delegado percebeu que não havia mais a mesma convicção de antes na voz de Rick :
_ Olha aqui seu Ricardo, é melhor pensar bem e contar de novo o caso. Fale com calma e cuidado, não tenho tempo para mentirosos!
Olhou para Jasão que parecia rir de canto de boca e disse em voz de impaciência:
_ Cada uma que me sobra... Essa hora da noite e eu aqui ouvindo essas...
_ Vamos lá seu Ricardo, começa!
Rick torna a engolir seco, passa a mão pelo rosto, e diz:
_ Sabe doutor, eu contei tudo certinho, só que o carro não estava bem-bem dentro do posto não, estava meio longe, em frente da pastelaria do Zezo, do outro lado da rua. De verdade eu vi mesmo que o Aguinaldo estava com a locadora fechada, eu desci, tomei uma cerveja e quando pensei de ir embora, cadê o carro!
_ Que horas foi isso, seu Ricardo?
_ Ah...foi às 19:15h mais ou menos, doutor.
_ Chama de novo o Zé Patrola, Jasão.
_ Atento Zé, atento Zé. O doutor pediu para você verificar na pastelaria do Zezo se alguém sabe alguma coisa sobre um furto de veículo: o Maverick do Rick.
Desligou e começo a rir:
_ Não é que rima doutor?
Quando Rick esboçou um sorriso amarelo, pensando que a tensão estava sendo aliviada, ouviu o berro do delegado impaciente:
_ Se acha engraçado, seu Ricardo, ainda não viu nada. Engraçado vai ser o senhor passar a noite no xadrez!
Rick estremeceu...
_ Doutor, eu só vim aqui dar queixa do carro, sou um cidadão honesto. Trabalho duro e tenho família.
_ Atento Jasão, atento Jasão!
_ Estou aqui com o Zezo. Ele disse que não viu o Rick na pastelaria hoje e que ninguém viu movimento nenhum de carro roubado. Aliás, Jasão, diz para o doutor delegado que não dá para estacionar aqui em frente hoje, estão mexendo no esgoto, uma buraqueira só!
_ Positivo Zé. Cambio final, desligo.
As ventas do delegado estavam como foles: abriam e fechavam sem parar. Uma coloração vermelho-fogo tingia a sua cara redonda e os olhos fulminavam Rick.
_ Tá certo seo delegado, eu conto a verdade, não fica nervoso não...
_ Se não quiser apanhar, vai abrindo a boca, safado!
Rick então, sem alternativa, contou do carro atolado e da situação difícil em que se achava com a cunhada.
_ Pois então armou tudo isso só para limpar a barra, não é? Fique sabendo que sem-vergonha aqui não tem vez não!
_ Jasão, liga para a pobre mulher desse infeliz, manda ela vir para cá.
_ Não faz isso não, delegado!
_ O senhor, seo Ricardo, aguarde aí sentadinho e de bico calado.
Luzia demorou uma meia hora e apareceu assustada na porta do plantão policial. Estava lívida...
_ Nossa Senhora da Abadia, Rick, o que foi que aconteceu?
O delegado então, tomando a iniciativa do prosa, contou em detalhes para Luzia o que havia sucedido. Da traição do marido, do carro no matagal, do plano todo engendrado por Rick, e principalmente quem era a companhia do marido no momento do “roubo”; a irmã dela.
Luzia ouviu tudo, cabeça baixa, pensativa...
_ Bom dona Luzia, agora é com a senhora!
Saiu da sala e deixou os dois sozinhos: Rick e Luzia.
Lá fora o delegado e Jasão apostaram num “barraco”.
_ Eu acho que ela bate nele, disse Jasão sorrindo.
_ Eu também, disse o delegado.
_ E é bem feito, safado...
Na sala, nem um piu se ouvia, nada! Um silêncio de morte...
Depois de alguns minutos, ouve-se o arrastar de cadeiras. Luzia pega a bolsa, e diz em tom impositivo:
_ Vamos Rick!
Atravessou o corredor, parou em frente do delegado e do Jasão e falou com calma:
_ Nós podemos ir embora, delegado?
_ Pode e nunca mais apronte outra dessas, seo Ricardo!
_ Nós vamos indo então.
E continuou:
_ Em casa eu converso com ele. Estou chateada com a mentira e a dor de cabeça que ele deu para o senhor! Peço desculpas pelo incomodo...
_ Ele não devia ter feito isso não, eu nunca achei que ele iria arrumar outra mulher, é um paspalho; mas já que arrumou ainda bem que é da família!