Amores do olhar

Se um dia me traz vinte e quatro horas, preciso de acréscimos para executar as tarefas de apenas um dia. Meu relógio é mais curto que os outros e me conta e rouba o tempo. Meus minutos têm a velocidade do bater de asas de um colibri afoito, embora não ando eu a provar de tanto mel. A água que bebo no dia-a-dia é amarga como o que vêm e sentem meus olhos.

Ela é linda. Desconhecia-a há onze anos. Por que só agora temos que ocupar o mesmo teto?

Do trabalho até a casa, é perto. Eu é que saio tarde e chego em casa mais tarde ainda. Ela não trabalha; o que a prende em casa é um ciúme desembestado que sobrevive dentro de mim. Esse é forte amarra doente que me bestializa. Deixo-a trancafiada e vou!

Em frente à televisão, ainda que para mim não olhe, seu corpo me fala tudo o que sente, também com medo. Queria saber se parecido com o mesmo que sinto. Deve ser. Não fizemos nada ainda porque há um mortal receio em cada gesto. Levá-la para a cama fere até o olhar de meu dedão do pé. Olho suas pernas cruzadas. Sua saia volta às virilhas, tão curtas são. Senta-se enviesada para provocar o meu instinto. Grita por seu decote atrevidíssimo que me mostra seus mamilos róseos, quase rentes à pele. Levanta-se e senta-se constantemente. São as contas do seu terço provocativo que anseia cair em minhas mãos para ser tocada no mais profundo dos desejos, de onde pretende deixar sair o pudor e o escrúpulo de um homem viril, prisioneiro da libido.

Vou trabalhar e volto e ela não me sai do coração. Momentos há que me desce ao falo e faz-me parar de produzir e sair de órbita ao trancafiar-me nalgum banheiro. Tenho-a como forte sombra diabólica, mais vívida que minha tara maluca de querer esquecer de onde veio aquela jovem mulher carente de muito menos coisas da vida. Observo seu corpo e me esqueço de sua alma. Há entre nós uma imensa tara.

-O que você pensou quando sua mãe de criação morreu?

-Nada...

-Como nada? Ficou sozinha.

-Eu já sabia do seu paradeiro. Queria conhecê-lo de perto, morar aqui.

-E apenas vir para meu apartamento lhe bastava?

Baixou a cabeça porque seus olhos jamais me encaravam. Virou-se para a televisão, fez questão que visse sua calçola colorida. Eu olhei para seu corpo audacioso. Sentia-me pequenino, ânsia retesada, carne trêmula. Parti no desembesto do sexo.

Há dois anos e oito meses dividíamos o mesmo apartamento. Eu dormia na sala e ela em meu quarto, de porta escancarada. Nunca a visitei. Quando tragava alguns uísques além da conta, só retornava para casa no dia seguinte. Dormi muitas vezes no Campo de Santana, no centro do Rio, em companhia dos mendigos da noite. Sempre quis livrá-la do meu desejo de tê-la como mulher.

Havia na pele de Isaura um lobisomem apaixonado por mim. Como podia estar lambendo-a dos pés aos olhos? Cruzava caminhos despudorados, mas proibidos. Sei lá o que fazia...

Sufocou-me loucamente. Tirou-me toda a roupa em fração de segundos. Louca para me amar. Deixei-a ir como se essa fosse uma forma de saciar um pecado. Senti-me desvirginado, dada a fúria da única virgem entre nós dois, ela. Não achei qualquer remanço no oceano onde fui banhar-me. De sua boca saíram trovões de beijos. Seu olhar cortava-me em dois. Foi nesse dia, a primeira vez que vi a cor dos seus olhos. Eram iguaizinhos aos meus. Deixando-me ir sem freios, não cheguei a lugar nenhum, diferentemente dela que foi e voltou a todas as estações que o desejo quis levá-la. Terminada a batalha, a guerra, o descuido infame, deixei-a melada da seda branca da insensatez e meu corpo se arriou ao lado do dela. Fechando os olhos, vi minha história correr dentre o amargor de fartos retratos. Quando nos separaram de casa, ela tinha apenas dois aninhos. Eu já era mais velho que ela nove anos. Agora, apesar de seus dezenove, dezesseis dos quais longe de mim, havia a encontrado do outro lado da história.

Caí na psicanálise para não morrer de tudo. Comecei a aprender a andar ladeado com os desejos, sem me apavorar. Deixei-a viver sozinha. Ainda mantendo-a de tudo. A depravada, em meus sonhos, continua a vir visitar-me nos fossos escuros da madrugada. Nesses instantes, permaneço cedendo aos desejos, mas apenas neles, onde mesmo assim judia-me uma censura forte.

-Você tem visitado ela, Pedro?

-A última vez que a vi faz três meses.

-E aí?

-E aí que todos os desejos de ontem vieram para hoje. Continuam a ofertar-me com olhos mágicos, cheios de sexo, viçosos, doces e proibidos.

-Isaura é sua única irmã?

-É. Somos três e apenas ela de mulher.

-Mesmo pai e mesma mãe?

-Irmã verdadeira, doutor! Mesmíssimo pai, mesmíssima mãe.

Tenho rezado bastante para que esse ímã miserável que tenho dentro de mim, desfavoreça de sentimentos estranhos o meu olhar quando a cruzo. Nada fenece. Continuo a brigar comigo mesmo e me perguntar: tinha que ser logo comigo? Bem que alguém me dissera certa vez que a proximidade da sedução agarra os desejos de forma tão forte que nem a sombra, sob um sol comum, quer paralelar o corpo, mas vai.