Fiquei sem a carta...
Ah! Meu amor, como eu queria ter recebido e lido tua cartinha prometida; disseste que assim que chegasses no teu novo lar me enviarias. Disseste-me que ela conteria o desfecho de uma paixão surda, alimentada sozinha, em teus solilóquios também apaixonados, inquietantes até, cheios de sonhos. Cheguei a preparar-me para lê-la, mas infelizmente não a tive; é que tu não foste e eu não sei o que me foi melhor.
Voltamos a nos olhar na distração ou no fervor de certo engano. Meu olhar voltou a achar o teu, ditoso e belo, escondido das palavras, ancorado apenas em gestos vagos. Continuamos em transe a alimentar esse olhar sem querer ver o que sentíamos na alma.
Esta carta prometida que não se concretizou, escondeu-se de nós dois, amarrando ainda mais as asas de um sonho de certo desalimentado agora porque vives o ofício de tua presença e é desesperança enquanto medo, enquanto dúvida, enquanto tudo nos diz nosso pecado desejado e tão cheio de sabores sacarosos.
Permaneceste perto de mim, como lindo colibri afoito e faminto dos néctares de nossas palavras indizíveis, mas dos gestos mostráveis. Sopramos a poeira que se espalha entre nossos corações e o vento leva a pensar noutros braços que meus olhos, sem os ver, assim acreditam. Uma doce ilusão parece ter azedado nela mesma. Restou a vontade viva de ter sabido que dela me viria escrito talvez o mais lindo poema de amor que pudesse, ao lê-lo, declamá-lo para o mais profundo de minha alma.
-É..., eu não fui.
-E tenho que alegrar-me com isso.
-E a carta?
-É tua somente. Bem que poderias fazê-la hoje e entregá-la aos braços dos meus olhos e assim ainda estás fazendo, um grande serviço aos nossos corações mesmo que permanecendo afastados.
-Não te posso dá-la. Possui todos os segredos que fiz apenas para te dizer quando estivesse longe.
-Diz-se também o que bem próximo se ama, não concordas?
-Minha coragem é que me nega fazê-lo.
-Oh! Que coragem mesquinha e cruel tens ao peito! Corta-a e diz-me tudo e sara a ânsia dos que ignoram o que tanto pressentem na alma. O que é vivíssimo.
-Só se me for para longe de ti. Queres?
-Ah! Se soubesse o que ela me traria de alegre, bem que platonicamente poderia ficar a amar-te ao abraçar o vento que trouxesse teu perfume envenenado e forte, mas que soubesse tudo o que nela se esconde.
-Queres que eu vá?
-Não sei se quero que fiques; como poderia dizer-te que vás?
-Há uma sombra entre nós. É isso que vejo.
-Há uma sombra sim. Há também uma névoa. Esta diz tudo, e aquela nos escurece a verdade.
-Talvez as duas estejam a ajudar-nos.
-Dão-me versos poderosos. É apenas o que me beija, o que me abraça, o que me fica.
-E não te basta isso?
-Talvez sim, talvez não. Adoraria amar-te entre os pecados do proibido.
-É apenas um fogo.
-Mas queima muito e amarra e ama e fere!
-Andamos demais!
-E tanto caminho nos há à frente. Penso que parte do desejo feneceu.
-Não me amas como antes?
-Disse do desejo que é paixão, mas não do amor surdo-mudo que sobrevive a gestos do teu rosto.
-Até dele tiras meus sentimentos?
-Ele é o principal espelho. Teu corpo, não, esse se esconde, diz e desdiz. Mas teu coração fala por teu rosto que brilha e quer e acha que não pode e assim fala o teu corpo todo.
-Nem sei tudo o que dizes. É bem mais do que pensei.
-O que pensaste?
-Menos do que tu pensaste. Muito menos!
-Então não deveria ter viajado mesmo. A carta trar-me-ia a miséria de um engano.
-Não..., não..., ela não seria ruim. Diria de nós dois.
-E o que acredita há entre nós dois?
-Só minha coragem de longe poderia dizer-te.
-Então, vai e volta.
-Não é tão fácil assim.
-É..., eu também poderia ter viajado. Seriam outros rumos, outros destinos.
-Tu viajares..., e eu?
-Ficarias no teu sono permanente. Uma vida apenas.
-E se fosse contigo?
-Para onde?
-Para um correio. Cada um de nós levaria nossa carta já envelopada e a poria na mesma data e voltaria para nossos lugares, de antes, após tê-las lido!
-Não sabia que tua vergonha possuía pernas – pernas também da covardia.
-Não me julgues apenas pelo que acabei de dizer-te. São palavras, palavras..., apenas palavras medrosas.
-O que nos impede de termos um ao outro?
-Cada um de nós!
-Mas se tirarmos um “cada” desses...
-Não seria mais nós dois.
-E aí?
-Uma boca apenas não beija.
-E para duas bocas tão próximas, por que é mais difícil ainda?
-Porque, porque...
-E entre esses porquês, nunca alcançamos as respostas que imaginamos existir longe de nossos ouvidos.
Helena se foi morar a poucos milhares de quilômetros dos meus olhos, distância suficiente para, apesar de não esquecê-la jamais, repor as emoções fortes e seus desejos cúmplices em seus devidos lugares. Casou-se, vive infeliz e permanece a enviar-me cartas belíssimas de amor; um amor que o medo nos proibiu tê-lo em carne e osso. Um amor que não nos foi apenas platônico, mas vivo e distante dos olhos, e tão próximo do coração onde nada se apaga, nem fenece, nem é esquecido de tudo, nunca.
Em todo mês de maio ela me manda uma linda cartinha trazendo entre suas folhas um lírio murcho, símbolo este que gostaria de dizer: parece comigo. Ela é rosa vermelha cheia de mulher e vida e sexo. Saiu de algum jardim adubado de vontade e de fúria de amar. Dos olhos, longe está ela de mim; do coração, bem mais próxima do que ontem.