Steve, Jones e eu

“Steve, Jones e eu”

Meu nome é Raimundo, mas podem me chamar de Ray. Morei na América durante quatro anos. Morei, não, ralei. Lavei banheiro, entreguei pizza, o diabo. Ganhei muito dinheiro, mas não deu pra guardar. Quando voltei para Goiânia, de São Francisco, comprei uma casa pros meus pais, uma kitinete para mim e uma moto. Adoro motos.

Daqui a dois dias o Steve chega. Ele é meu grande amigo. Junto com o Doctor Jones. Eu o conheci, o Steve, em São Francisco. Ele tinha uma Ninja, esportiva clássica, roxa e verde. Um tiro de canhão. O Steve anda até encurvado, de tanto girar por aí na bichona dele. Gostava de fazer “a grande volta”, sair do Moscone Center, voando. Passar pela Bay Bridge, que é muito mais legal que a Golden Gate – que fica quase no fim desse circuito - e depois morrer no Fisherman’s Warf. Bons tempos aqueles. Foi lá, num domingo de 99 que chegou o Doc.

O Doctor Jones tem uma Harley. O homem é sólido, já viajou o mundo, mas não corre igual eu. Nem o Steve. Ele gosta é do vento na cara, longos roteiros. Ele que me arrumou o emprego na Traço, do amigo dele, o Montoro. Sou de longe o mais rápido e eficiente motoqueiro da empresa. Já bati todos os recordes de entrega. MacDonald’s então, nem esfria. E a maionese não derrama. Não dá tempo. Modéstia as favas, sou bruto.

Toda manhã, as sete, eu acelero na porta do apartamento dele. Marcando território. Se ele estiver saindo, espero. A gente sobe a Avenida Mutirão no cacete. Tradicional. Sabe, eu sou um homem de hábitos. Nunca perdi nenhuma. Mas é foda, a Harley dele é uma Sporsters 1200S. Máquina. Eu tenho uma CBX 200 Strada. Ia comprar roxa, em homenagem ao Steve, mas o Doc me convenceu pegar uma vermelha. Cor de moto pra mim agora é só Flamengo. Ou é vermelha ou é preta. O resto é coisa de viado.

E bicha é coisa que eu –definitivamente- e nem meus amigos, não somos. Aliás para falar a verdade, verdade verdadeira mesmo, se o sujeito não é meu amigo e nem meu parente, é gay. Pra mim todo o resto é fanchona. Coalhira, como se diz no Piauí, terra de meu pai. Sei que é politicamente incorreto, mas é o que acho.

Hoje está chovendo, não combina com moto. Só de olhar pro céu eu sei. Se pro lados de Senador Canedo está escuro, vai cair água. Sempre, em Goiânia, a chuva vem do leste. O problema não está no que cai e sim no que fica. Explico: o chão recém-molhado misturado com o óleo, fica uma baba. Derrapa. O Steve já torceu o pé umas duas vezes. Só de tentar equilibrar na saída de curva. O Doc então, só usa coturno. O pé dele já ficou frouxo de tanta fratura.

Eu? Eu nunca caí. Nem estacionando. Nem carregando macaca na garupa. Por falar em garupa, a melhor mulher é aquela que fica grudadinha em você. Que nem um bichinho. Inclina na curva juntinho e coloca o capacete de lado para não ficar batendo. São poucas assim, mas eu tenho uma. Ela é um guaxinim de tanto que é felpuda e cheirosa. Adoro bichos também. O Steve me levou uma vez no Yosemite Park. Lindo. Os ursos e as “big reds”, as sequóias, árvores que a gente nem vê a copa, de tão altas... Mariposa Groove, que lugar mágico. E as curvas? Eu deitava na minha moto como quem abençoa o chão, mas não bate. Eu sou assim, do caralho.

Quando cheguei no Brasil o Jones me apresentou a Chapada. Adorei. Estrada nova. De Goiânia a Anápolis eu bati o recorde, de trevo a trevo foram pouco mais de cinco minutos. Cobri os 35 quilômetros com uma média de 225 por hora. A estrada parecia um videogame Nitendo. Só os carros passando em câmera lenta e eu mandando ver.

De Anápolis até Brasília o pneu furou e ele teve que ir com a perna dele esticada no meu pedal, e a barriga no tanque. Lanchamos no Jerivá. Eu tinha esquecido como um pão de queijo quentinho é bom.

Não dá para furar os sinais na chuva, e eu acho um saco isso. Eu fumo. E fica muito difícil não molhar o cigarro. Lembrei-me que em setembro, no campeonato de pólo do Doc, chovia. Grande curvas, em parábola. Igual a de Cristianópolis, na estrada nova para Caldas. A Chapada tem cachoeira e bicho do cerrado. Aí eu olho a enxurrada e me recordo. Visto minha roupa de chuva, estou zero.

Já parei no sinaleiro da Praça do Cigano. Antes de passar na casa do Doc eu tomei uma vitamina, bomba atômica. Deliciosa, mas chato é que o barro no outro dia fica colorido, mas tudo bem. Acelero e dou giro. Fico com a mão na embreagem, vou sair empinando. Ele está de ponto morto. Confia no motor, e eu no meu taco. Vamos ver. Eu sei que em 45 segundos o sinal abre, mas olho os carros vindo. Se der eu avanço. Vou largar o Doc na Chapada.

Vrum, vrum, vrum. Saí na frente, empinar sempre quando passa para a segunda, nunca de primeira. O Doideira me ensinou. Agora em dezembro é o fim das aulas, nunca tive filho. Quem anda de moto do jeito que eu mando é perigoso deixar órfão por aí. Cortei pela direita. Tenho mais dois segundos até o farol da esquina com a Saga ficar amarelo. No yellow eu sempre passo. Não tem erro. Olho pra esquerda e os carros ainda estão parados. Dá tempo, sempre dá. A Harley vem babando do outro lado. Passamos.

Nenhuma moto nos acompanha. Na próxima parada tem um caminhão à esquerda, que vai virar na Avenida D e um fusca na direita bem direitinho. Sei que abre primeiro a fase da direita. O cara vai virar, pois ele mexe a cabeça para esse lado. Vou dar um quebra para a esquerda, entre o Scania e o Volks. Passando no meio. Daqui não cabe, mas quando eles se movimentarem, eu soco o pau.

O Doc ficou um pouco atrás. Mas ele vem acelerando, deve estar a uns 120. Eu nem cheguei a 80, o mais que essa moto dá é na descida do Retão, com eu deitado no banco e trocando marcha com a mão. Consegui 140. Terça a noite. Depois – de prêmio- vou amar no mato minha namorada. Não vai dar, não vai dar ... Deu! Bem, lá se foi mais um retrovisor. Mas quem mandou o otário demorar a arrancar?

Desequilibro um pouco. Jones quase me alcança. Há uma seqüência de verdes e vermelhos, sem fotosensores e nem pardais. Se bem que eu já dobrei a minha placa. E quando vou jogar uma sinuquinha de noite com os amigos, sempre tem um na garupa que cobre com a mão. Tranqüilo. Mala é mala. Já estamos chegando na esquina da Avenida 85.

É uma boa curva, inclinada, em subida e para a direita. O Doc – que é canhoto – não é fã, fica sempre olhando pro ipê amarelo. Eu não vejo nada. Nunca nem reparei na enorme paineira que fica do lado direito. Isso é coisa de poeta, como o Steve. Eu sou no máximo cronista, da vida.

Ganhei mais uma vez. Mas foi por pouco. Ele vai virar a esquerda para o Hospital e eu vou seguir. Ele tira as mãos do guidão e faz um gesto de banana. Depois deita no bancão dele. Eu vibro. Levanto da moto, fico de joelhos no banco e ergo meu braço esquerdo com o dedo médio bem riste. Amigo é amigo, fedaputa é fedaputa. Aposto que ele vai operar super-bem, hoje. O Doc é fera.

Essa noite eu vou bater uma sinuca apostado. Sem erro. Ninguém me conhece na Vila Nova. Adoro um bar sujinho com cerveja gelada e caçapa. Bola sete. No meio. Qualquer coisa, se sair porrada, eu chamo O Doc. O Steve também é bom de briga. O Steve foi campeão de caratê, aprendeu o “round house kick”com o Chuck Norris, professor dele. O Steve é bem relacionado. Acredita que fomos bater na porta da casa do Clint em Carmel by the Sea?

Bebi demais, e essa porra da chuva não passa. Os Abutres meus amigos já se foram. Tô meio tonto. Não sei se é a cerveja ou o tempo, mas ta tudo nublado. Ela acabou de me ligar, a aula já terminou. Ela já tomou banho. E eu aqui, lerdando. Por que não vou atrás dela, que é muito melhor do que essa jogada no “castigado” em que me encontro?

Subo na moto e acelero. Furei o miolo do escapamento. O Steve vai gostar. Ele sempre foi adepto do barulho. Todo mundo sabe que sou eu quando estou chegando. Vou passar pela Praça Universitária, é legal o circuito interno. Dá para ficar mexendo quadril sem usar o volante.

Estou rápido, vou jogar marcha para baixo, reduzir e entrar acelerando. Se tem uma coisa que não combina é noite, chuva, bebida e motor. Entro de lado. Merda. Conserto para o meio da rua, a moto não obedece. Derrapo. Tento ficar colado nela até chegar no meio-fio. Daí solto. Estou voando. Tem uma árvore. Agrupo meu corpo em posição fetal. Deixo o resto bater. Dói. O capacete racha. Paro. Estou vivo. Minha cara está toda melada, mas não vi lama. É sangue. Minhas pernas estão num ângulo esquisito. Acho que quebrei umas costelas também. Do lado esquerdo está difícil de respirar. Estou com sede. Vou desmaiar, tenho certeza. O celular, ligo pra ela. Não deu para falar. Fui.

- Alô?

- Boa noite, Dr. JB.

- Sou eu, a namorada do Raimundo.

- O Ray?

- É. Ele está na UTI do HC. Dá para o senhor vir aqui agora?

Saiu tão veloz quanto a CBX do Ray. Calçou-se no meio do elevador. Colocou o casaco enquanto ligava a moto. Calma JB, um já caiu. E o Steve vai chegar amanhã. Easy, man.

- Raimundo Nonato, por favor.

- Leito 07, professor. É seu amigo?

- É sim, muito.

- Sinto muito, mas ele está mal.

- Começa de baixo pra cima.

- Fratura de bacia, lesão de lobo hepático esquerdo com rotura esplênica. Três costelas se foram. E tem um hematoma subdural. Vamos drenar daqui a pouco. Sangrou muito. Vamos precisar de A( - ).

- Pode deixar, eu mesmo dou. E o Steve também é igual.

- Sangue raro. Mas todos sangue bom, né Doc?

- É.

Abaixei a cabeça e relembrei as inúmeras vezes que subimos a Mutirão no maior cacete do mundo. Nada aconteceu. Uma curvinha besta e o Ray se ferrou. Mal sabe ele que o Steve vai lhe dar um presente. Uma surpresa. Uma miniatura de uma moto. De prata. Nós, apesar de valermos ouro, só usamos prata. De lei.

- Doc?

- Fala amigo.

- Eu vou andar?

- Vai.

- De moto?

- Se quiser...

- O senhor buscou ele no aeroporto?

- Ele tá aqui.

Virei meu rosto para o lado. Lá estava meu brother americano. Altão, loiro, olho azul, aquela cara meio lerda deles, meio gordinho. Era o Steve. Do lado dele, por detrás do vidro, o meu velho pai, me chamando de Mundico. Mais para a esquerda, sempre à esquerda, ela. Linda. Pequenina. Um chaveirinho.

- Doc, por que é que o senhor está com a mão para trás?

- É um presente do Steve.

- Mostra aí.

Uma reprodução perfeita de uma 750 Four, a famosa “Sete Galo”. De prata. Quase chorei. Era minha moto preferida. O meu sonho de menino. Nunca tive dinheiro pra comprar.

- E na outra mão, Doc?

- Abre.

Uma caixinha bem pequena. Imaginei um anel de prata também, em formato de cobra. Ou então uma foto nossa, em preto e branco no Grand Canyon. Ou até uma passagem para a Califórnia. Não era nada disso. Eram as chaves. Com a asinha e tudo da Honda. Aqueles sacanas compraram pra mim. Um sonho não tem preço.

- Por que essas manchas no corpo?

- Reação aos remédios. Síndrome de Steven-Johnson.

- Você que colocaram-na em mim?

- Não.

- Que dia que eu saio?

- Não tem previsão.

- Pega na gaveta do plantonista o cigarro e bota no furinho aqui.

- Ray?

- Fala Doc.

- Me promete uma coisa?

- Qualquer uma irmão, menos o rabo, claro...

- Ahahahahahahah!

- Desembucha, brother.

- No próximo racha na Mutirão você me deixa ganhar?

- Só se o Steve estiver junto.

- Ele estará. Ele estará.

- Puxa, quase pensei que você ia pedir para eu maneirar na tocada da moto.

- Isso não dou conta.

- Posso pedir outra coisa?

- Já sabe a exceção...

- Sei, claro.

- Na chuva, na noite e bebendo, a 750cc fica, OK?

- Com vocês, irmãos, com vocês.

- Amém.

- Amém.

- Ah, todo dia eu vou passar aqui, tá?

- Antes de subir, dá uma aceleradinha pra eu saber?

- Só se for no coração, irmão.

- Perfeito. É onde vocês moram.

JB Alencastro

JB Alencastro
Enviado por JB Alencastro em 25/03/2008
Código do texto: T915889
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