De Minas Gerais para a Mangueira Carioca
DE MINAS GERAIS PARA A MANGUEIRA CARIOCA
( escrito no carnaval de 2004)
Era mineira de nascença. Veio para o Rio no início da adolescência. Ajudava a tia lavando roupas para fora. A tia que a recebeu em casa dava-lhe um pouco do carinho da mãe que morrera, e insistia que a menina devia estudar, e pegaria mais trouxas para lavar e passar, agora que tinha outra boca para sustentar. Giselen, a menina, estava feliz.
No intervalo das aulas conversava com sua nova melhor amiga.
- Cê gosta de dançar?
- ô se gosto !
- Então pode entrar no curso de balé da comunidade, o " Dançando pra não dançar", do projeto social da Mangueira... o maior da America Latina!
- É...!?
- É, aparece lá depois da escola... ah, tem que estudar, claro!
- valeu, vou vê se dá tempo, ajudo a tia com as roupas, cê sabe...
Após uma semana já adicionava à nova vida os primeiros exercícios de balé. Sua amiga fazia teatro em outro dia e hora, mas não importava. Adorava dançar e agora podia, além dos estudos obrigatórios no CIEP, ter aulas de dança, algo que não podia pagar e freqüentar se não fosse o tal projeto dá comunidade. Tinha colegas que particavam de todos os tipos de esportes lá também.
O carnaval chegara e a Mangueira, escola na qual sua tia saía há muitos anos na ala das baianas, estava toda que só ouro. "Homenagem à minha terrinha", dizia a garota para os colegas. Ia sair de bailarina mesmo, numa ala toda rosa, com grandes aros como adereço. Desde dezembro ia aos ensaios contagiantes na quadra da Mangueira, agora de teto retrátil, a primeira das escolas a trazer este conforto.
Entusiasmada com seu primeiro ano de desfile, pensava que sua mãe, lá no céu, estaria feliz, afinal, a única filha ia se fantasiar e sair no Sambódromo homenageando logo a terrinha mineira.
Giselen era só alegria e, como todo adolescente, dedicava-se de corpo e alma aos próprios interesses. Alegria que se multiplicava pelo fato do evento ser tão importante no Brasil, admirado no mundo, a Mangueira tão famosa, e o enredo de 2004 falar de Minas Gerais. Quem diria, fazia apenas 15 meses que sua mãe morrera, e a tia a trouxera para o Rio, pensava num mix de tristeza e alegria.
Chegou o dia do desfile oficial. Caía uma chuvarada na cidade maravilhosa. Toda a noite fora feita de samba, alegria, brilho, colorido, e muita água. E em sendo seu primeiro desfile, assim mesmo não sentiu frio, não sentiu medo. O pessoal da escola era uma grande família dentro do barracão, nos ensaios, e agora - no grande palco - eram todos estrelas da noite.
Sentia que se apresentava num grande teatro com a comunidade e grandes artistas como Milton Nascimento, Beth Carvalho, Carlinhos de Jesus, entre tantos outros. A TV filmava, a arquibancada vibrava, o mundo via e ouvia a Mangueira contar um pouco da grande história de Minas, terra de toda sua infância, e de toda a vida da sua mãe morta. Ela renascia para um novo mundo, novos horizontes, com o amor da tia e daquela comunidade bonita, fraterna.
A TV Falava das drogas, dos traficantes, dos perigos, da violência, mas a tia veio, vieram comunidade e o carnaval, e todos mostraram um novo enredo para a Giselen, outra possibilidade de existência. Não haveria só dor e tristeza, só medo e pobreza. Não estava só, ela tinha sorte e sabia: lavava roupa, estudava, dançava, e integrava para sempre a escola, pensava. Aquela sua melhor amiga agora era uma das passistas mais novas da comunidade. A própria Giselen estava indo muito bem de samba no pé, mas também ia bem nos exercícios de balé clássico, e nos estudos.
Tinha um enorme orgulho da tia da ala das baianas. Em Minas ainda, vira algumas fotos que ela enviara para sua mãe. Sua mãe, que era muito chegada à terra, gostava de plantar e fazia quentinhas para fora. Desde que o marido sumiu no mundo cozinhava para fora, e freqüentava a igreja todo Domingo.
Um dia, depois da missa das 19 horas, cortou legumes para o dia seguinte, beijou a filha e foi dormir. Não acordou mais. Giselena fez café, tirou o bolo de fubá do forno e decidiu que já era hora de acordá-la. Afinal, era Segunda-feira, as quentinhas tinham que ser preparadas. A mãe nunca passava das 7 horas na cama. Foi como Giselen narrou a morte dela para a tia chorosa que não pôde ir ao enterro, mas logo depois chegou e levou-a para o Rio. Sua única sobrinha, que agora era também sua única filha.
Na Quarta-feira de cinzas veio a contagem dos votos. A Mangueira empatou em segundo lugar com a Unidos da Tijuca. O novo critério de desempate era o quesito evolução. Beija-flor ganhou o primeiro lugar, e Viradouro em quarto, seguida de Império Serrano. No desempate, Mangueira ficou com o terceiro lugar. Um golpe. Afinal, como entender estes critérios? E como dizer que a outra escola também não merecia? É a vida, a mocinha dizia para si mesma e para a tia, lembrando do que ouvira quando a mãe tão boa e trabalhadeira morreu, assim... depois de ir à missa, ter descascado os legumes das quentinhas do dia seguinte, beijar a filha, e ir descansar para mais um dia de vida que não veio. É a vida, minha tia... ano que vem, quem sabe... a vida resolve um outro enredo na hora do desempate.
Esta vida se mostrava para a garota como a grande artista que a movia e emocionava, a ensinava e clamava por sua força e garra.
No Sábado do desfile das campeãs, a Mangueira estava toda lá, e a arquibancada, e a TV, e o mundo, e os brios. Já não chovia e muita cerveja tinha rolado nos barracões das campeãs. O Milton, a Beth, a Alcione, o Carlinhos de Jesus, da linda comissão de frente de quem Giselen era fã, e tantos outros, todas as alas, a tia, a bailarina e seu aro cor de rosa. Também não faltaram os críticos carnavalescos como comentaristas de TV e revistas. Um deles, considerado muito agressivo depois pela menina mineira-carioca, chutava os baldes, apesar de grande autoridade do samba, ou por isto mesmo.
-Ah, quanto saber e quanta posse da verdade! Os senhores da verdade! Comentou a tia com desagrado ao ler os comentários de um deles nos jornais.
A apresentadora da emissora, mostrou-se uma mestra da comunicação, ganhou ainda mais fãs. Que seria da alegria se não fosse a Astride! Diziam gregos e troianos, cariocas e baianos. E que seria do carnaval na avenida se não evoluísse como tudo na vida? Uma eterna mesmice, e nossos olhos se renderiam ao sono nas madrugadas sem as novidades e soluções, as que faziam o carnaval do Rio ser o maior espetáculo da Terra, com samba, memória histórica, crítica social, alegria, e povo brasileiro, diziam poetas, sociolólogos, artistas, e todo o povo.
No Domingo à tarde, Giselen assistiu ao vídeo com a gravação do desfile das campeãs da noite anterior na casa da amiga passista. Ouviu o Pamplona, na cabine da emissora de TV Band, dizer que não via negros na avenida, que a sua ala, a das bailarinas toda em rosa, devia estar ganhando um cachê, pois eram do municipal, e que aquilo não era samba. Giselen não entendeu em seu ingênuo pensamento, que nem todo o mundo abre os braços às novidades boas - aquelas que só vêm preencher um pouco mais as belezas, e não descaracterizá-las, assim como ela mesma preenchia mais belamente a vida da tia lavadeira.
Como não tem negros na avenida? Meus colegas estavam lá, mulatos, negros, brancos. Um monte de carnavalescos que decidem o roteiro de cada escola são brancos, e também mestiços, como todo o Brasil. Pelo que ele disse, então só poderia ser carnavalesco somente os negros e, inclusive, só negros seriam os críticos de escola de samba...
Foi o desabafo da moça na sala de aula, no natural debate sobre os eventos do carnaval e das escolas, já na Segunda-feira. Depois, escreveu uma redação: que o maior espetáculo do mundo era feito de gente que podia até pagar algumas super fantasias, mas que a grande maioria, além de não ganhar cachê, pagava em prestações os trajes. Um grande número de foliões da comunidade ganhava as fantasias da escola por não poder pagá-las nem em prestações. Que esta era a realidade da grande maioria que participava das escolas de samba e fazia o espetáculo ser o que é: principalmente amor ao samba, à escola, ao carnaval que era resumo da vida, das lutas e alegrias do país, de negros, índios e brancos, de misérias e união fraterna, em grande festa coletiva.
No recreio daquela manhã de Segunda o grupo de colegas continuou reunido, agora no pátio, e comentaram o terceiro lugar mangueirense, a beleza do carnaval da Unidos da Tijuca enaltecendo a ciência, e aquele seu carro alegórico "sinistro" do DNA, a chuva, os critérios de desempate, quais seriam os enredos de 2005, e Gisele Helena - assim é que assinava suas redações - só pediu aos deuses, em pensamento, que sua tia da ala das baianas ainda estivesse lá com ela, no palco da Avenida e no da vida.
( By Tânia L. Barros BRA ) revisado e republicado.