A morte

Ainda que seus dedos resistissem em percorrer a distância entre a vontade dele e a cabeça da mulher e cansados desistissem no alto da cabeça, o carinho era necessário a ponto de salvar a história. Ao descobrir-se em fim de existência, deu para relutar em morrer. Apesar de nunca ter se empenhado tanto na causa de permanecer em vida, agora tinha uma razão óbvia para lutar: “Não era a hora!”

Há pessoas que recebem os mais diversos golpes e conseguem sustentar a dignidade indo além dos escândalos corriqueiros... Não fazem alardes nem se manifestam contra nada. Aceitam, acatam e finalizam suas atividades como um resto de obrigação que precisa ser cumprida. O homem que habita este conto simplesmente não aceitou o fato de a morte sentar-se ao lado da cama dele e vigiar sua respiração com pressa e sem paciência. Fez o que precisou para resistir ao pontual encontro com a figura sem figura.

Era para ele um esforço sobre-humano levantar a mão e arrastá-la até a cabeleira de sua mulher! O percurso da mão sem controle, os braços comprometidos pela dor, o anestésico reclamando inércia, dificultavam quase a ponto do impossível o movimento. Mas ele não achava que devesse parar, não concebia ter uma mulher ao lado e não reverenciá-la com seu afeto... Então, fazia do ato, antes corriqueiro e quase automático, um exercício de resistência e soberania sobre os seus gestos. Ela por sinal, assim como durante os 30 anos de unanimidade a respeito do amor dele, não ousava ajudá-lo em hipótese nenhuma, temendo ferir-lhe o orgulho e a força. Aquietava-se em seu lado da cama, demorava em dormir, mas fingia tranqüila noite e grande segurança.

Soube que estava à beira da morte no dia em que guardava sua coleção de fotos antigas. Do alto da escada, procurando espaço na estante, viu girar o chão e escurecer a vista. Tombou. No hospital tomou consciência de que o acidente havia sido provocado por uma doença fatal. Não cabe aqui descrever exames e nomes impróprios aos ditames da poesia, o que vale saber é a reação indignada que fez com que o homem saísse dali carregando soro e agulhas pelo braço. A esposa acompanhou-o sem muita opção, aprendera que não valia a pena discordar sobre os atos do marido por falta de argumentos. A vida era dele, a doença também, se quiser ir embora a hora é já, foram mais ou menos as palavras que ele proferiu contra suas súplicas para que ficasse internado.

Vendeu o bom apartamento que tinham em uma cidade confortável e foi para uma fazenda no interior de um estado fora do mapa. Lá inventou de plantar oliveiras e vê-las não nascer, macieiras, amoreiras e toda a espécie de planta que ele ficava sabendo não suportar o solo da região. Entrou em constante desafio com a própria natureza que o criou. O dia mais feliz de sua vida pós-notícia de fim, foi quando a mulher entrou correndo pela cozinha iluminada para dizer-lhe que nasceu um fiapo de planta onde deveria haver a cerejeira. O homem deu um salto em direção ao jardim e gritou palavrões desconhecidos em sinal de alegria inenarrável...

Viveram ali uns dois anos sem que houvesse a doença tomado-lhe a forma física. Até que foram sendo corroídas cada uma das partes resistentes que ele tinha. Não houve perdão para os cabelos, os dentes, a potência, o sangue, a vista...Ele agiu como se o estado em que se encontrava fosse o real estado de todas as coisas, feito assim, dizia ter pena da doença da mulher e da dos vizinhos. Nem a dificuldade de movimentos fez com que ele se manifestasse menos. Insistia, sentia dor, ignorava. Não havia morrido ainda.

Não soube se a planta era mesmo uma árvore que dá cerejas ou erva daninha, o fato é que aquilo lhe gerou um sentimento de vitória sobre o destino, como se ele pudesse fazer vingar o que quisesse! “Somos deuses mulher, somos deuses!” Repetiu todas as manhãs.

betina moraes
Enviado por betina moraes em 22/03/2008
Reeditado em 22/03/2008
Código do texto: T912119
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.