Por um quase nada
Toparam-se na Praça do Mercado e foi esse o único encontro dos dois. O primeiro vinha de uma cidade próxima, num carro verde. Roubado. O outro guiava um carro vermelho, tomado de assalto na capital. Naquele instante, o do carro vermelho saía do café do Mercado. Entraram juntos num bar, no mesmo Mercado. No balcão, cada um pediu uma cerveja e um dedo de cachaça. Olharam-se nesse instante. Em minutos, trocaram prosa. Como dizem, nem se sabe desde quando, que um gambá cheira outro........
O do carro vermelho, assim como quem não queria nada, contou ao do verde o quê acabara de ouvir no café. Dois homens tomavam chocolate quente com pães de mel. Isso. Tomavam chocolate quente com pães de mel! Um deles, de chapéu de feltro marrom escuro, abas estreitas e copa alta, tinha ombros acanhados e vestia um casaco de couro preto, falava como que assoprando. O outro, desse ele pôde ver o rosto, tinha olhos de oriental, usava um casaco marrom de lã grossa e um cachecol em volta do pescoço, tinha a voz baixa e rouca. O de interesse mesmo eras o assunto. Um tal carregamento destinado a uma tal de baronesa. Excitado, repetiu ao outro, que via pela vez primeira, sem tirar nem botar, o assunto que tratavam aqueles dois homens que tomavam chocolate quente, bebida feita com chocolate, leite e açúcar e comiam pães de mel, bolacha feita de farinha de trigo, mel, cravo, canela e noz-moscada, coisa de gente das delicadas, dentro de um café, álcool zero.
_ É a primeira vez que vai lá?_ foi a primeira pergunta do dos olhos de oriental.
_ É. Pode me indicar como chegar?
_ Fácil. “O caminho é livre”.
_ Isso eu tinha de ouvir. O sinal. Agora quero saber. Lá naquela casa, que parece um castelo, mora uma baronesa. É...isso?
_ Baronesa de sangue mesmo, já morou lá, faz tempo, antes de ficar tudo ao deus-dará. É a razão do nome dado à casa. O palácio, ou castelo, como dizem, é dos fins de 1800, uma pompa só. Dizem. Os móveis, peças enormes, são ainda os que pertenceram à baronesa. Os jardins conservam os mesmos traçados da época, em que rolavam por lá as maiores festas. Festas e jogatinas de condes e barões ricos ou não e dos plebeus cheios de grana da região.
_ Mas, me disseram, que a carga era para uma baronesa. Quem é essa dona que mora nesse palacete?
_ Outra história. Mora uma mulher. Assim. Bem, uma mulher que não tem relacionamento com as pessoas daqui da cidade. Alguns dizem que emprega só duas pessoas. Outras, que seriam cinco ou seis. Os que dizem que ela tem só dois empregados, afirmam que esses costumam usar de disfarces para vir à cidade. Usam perucas de cortes e cores diferentes, bigodes, estilos diferentes de roupas e até enchimentos pelo corpo para mudarem o aspecto físico. Os outros dizem que são cinco homens e uma mulher que trabalham na casa e também no sítio todo, que já viram uma mulher, que não devia ser a baronesa, cuidando do jardim. Fico aos quatro ventos.
_ É ela a proprietária do castelo?
_ Hum.
_ Por que tanto zelo?
_ É ela a dona daquele terreno que podemos ver no alto do morro. Parece ter muita grana. Ou faz de conta que tem. Vive de um quase nada. Dizem. Ler e enfeitar a casa com flores é o que lhe causa prazer. A casa, lá de cima, impõe respeito, repara. Hum, falemos de você, de sua carga. Sabe o que leva no furgão?
_ Não me informaram e nem é minha obrigação saber. Esse carro é meu ganha-pão. Nele viajo de norte a sul, de leste a oeste. O que vai lá dentro, às vezes, sei o que é, outras, nem conjeturo. Minha obrigação é fazer a mercadoria chegar ao destino, sã e salva. Pelos cuidados que me recomendaram para com essa carga, só pode ser coisa das quentes.
_ Mas, nem manja?
_ Quero é saber como chego até lá no alto daquele morro.
O de olhos orientais aponta um ponto na rua, uma casa pintada de diversos tons de verde. Faz sinal, dando a entender que haveria um caminho qualquer atrás do prédio. O do chapéu mexeu só com a cabeça e gesticulou _ continua contando o que ouvira a conversa no café, explicando que, vira apenas o movimento do de casaco de couro preto apontando em direção ao ponto indicado.
_ A baronesa, que não é baronesa, é casada? Vive com família?
_Ô cara, presta atenção. Já não lhe disse? Vive só. Marido nenhum, nem parentes. Tem os empregados.
_ Você não disse que o terreno do castelo havia sido abandonado?
_ Eu disse? Bem, ficou assim, a esmo, por dezenas de anos. Quando o povo daqui da cidade percebeu, toda a área em volta da casa e a casa já haviam sido restauradas. A última coisa que fizeram foi cortar o mato que havia ao redor. Uma aparição. De repente, aquele troço todo foi visto lá no alto, como antigamente.
_ Você conhece mais coisa da baronesa do quer deixar aparentar. Veio aqui se encontrar comigo pra dizer onde devo deixar a carga. Identificou-se com aquelas palavras após me reconhecer... E diverte-se com o faz-de-conta...
_ Ó, cara. Você recebeu adiantado e não tem corpo pra briga, nem direito de ficar indagando titica nenhuma. Toma este cartão. Tem um mapa do caminho, a partir do lugar que lhe mostrei. Nesses traços, encontra instruções sobre como fazer abrir os portões e passar com o carro. Ao entrar num galpão, logo após o último portão, esse vai se fechar e as luzes vão se apagar. Alguém vai retirar a carga. Quando as luzes se acenderem, vire o furgão lá mesmo e retorna. Na volta, os portões serão abertos automaticamente. Em poucos minutos, estará aqui de volta ao mercado. Se fizer tudo direito, poderá ser contratado outras vezes.
Nisso, os que haviam se encontrado pela única vez, correram para a saída do café, na hora exata........
O do chapéu saía do bar. Logo pegou o furgão e se dirigiu ao ponto de onde deveria partir para entregar a mercadoria. Atrás dele, foram os carros vermelho e verde.
O caminho para chegar à casa da baronesa escondia-se por entre as árvores do morro. Os dois que haviam se farejado pelas semelhantes qualidades, acompanharam o furgão por uns minutos. Não deviam chamar a atenção dele seguindo-o em dois carros. Então, o do verde abandonou o veículo na estrada e seguiu junto com o do vermelho. Planejavam abordar o furgão antes que atravessasse o primeiro portão.
Foi o que fizeram. Puseram o carro ao lado do furgão e atiraram uma pedra na janela do lado do motorista, quebrando o vidro. O de chapéu intimidou-se e parou o furgão. Um dos homens desceu do carro e apontou sua arma para o motorista que acabava de abrir a porta do carro. O outro homem, também de arma na mão, viu o motorista, de corpo inteiro e sugeriu ao outro que não precisava ficar vigiando-o, que aquela “imitação de chofer” não tinha ao menos, volume de gente, que devia ocupar o mesmo espaço do chapéu que usava. Que pedisse ao nanico para abrir a traseira do carro. Não carecia desperdiçar bala pra fazer isso e que depois o fizesse ficar sentado no banco da frente.
Ao pote foram com a vontade de beber. O primeiro susto foi devido a um perfume de rosas. Não podia ser verdade, era o que supunham. Lá de dentro do furgão, retiraram molhos e mais molhos de rosas, de cores várias, de perfumes diversos. E livros. Muitos.
Despedaçaram rosas, desfolharam livros, desfolharam rosas, despedaçaram livros. Quando nada mais havia para desmanchar, os homens se olharam, um olhar de ódio. Depois desse olhar, ouviram-se estampidos. Um para lá. Outro para cá. E o baque de corpos caindo. Um portão se abriu e lá de trás, veio um homem de olhos de oriental, casaco marrom de lã grossa, cachecol em volta do pescoço para socorrer o de chapéu, que parecia estar desfalecido dentro do furgão.