Apenas um pouco de mágica
Tardezinha ele apareceu.
Eu havia salitrado o algodoal a semana inteira, hoje saira mais cedo da lida para caçar um pouco. As rolinhas faziam festa onde a gente havia colhido o arroz e eu tinha acertado uma pelotada de estilingue numa. Que agora jazia no embornal.
Saiu de traz de uma árvore, com um ramo fino na mão, quase me assustando.
Parei. Eu não o conhecia.
Falando a verdade não conhecia quase ninguém. Tirando os parentes que apareciam todo final de ano para a ceia de Natal, os compradores de grãos e um ou outro no povoado nas festas da Padroeira, mais ninguém. O sítio onde a gente vivia, eu, meus pais e minhas três irmãs, não favorecia o aparecimento de pessoas. Muito afastado de tudo.
Senti-me observado por inteiro. Os olhos dele fixaram-se nos meus pés descalços, na minha roupa surrada e só depois passaram para o embornal e o estilingue.
Caçou alguma coisa?. A voz soou-me familiar.
Uma rolinha. – abri o embornal e mostrei.- Cheguei agora pouco. – tentando justificar o fato de haver caçado uma só.
Ele abaixou-se, apanhou um capim, cortou a parte felpuda com os dentes e principiou a mastigar a parte macia, perto do talo. Vi-me fazendo o mesmo. Mania antiga.
Só agora ele olhou no fundo do embornal e viu o passarinho.
Está morta?
Pergunta tonta: eu tinha acertado em cheio a pelotada na cabeça.
Porque faz isso ?
O que?
Mata passarinhos.
Eu não sabia o que responder. Porque é que caçava mesmo? Nunca ninguém havia me perguntado isso. Fazia e pronto.
Vai comer?
Fiz que sim com a cabeça. Mentia. Nunca havia comido nenhum passarinho caçado antes, tinha nojo. Levava para os gatos ou jogava fora depois.
Ele então fuçou no bolso da calça e tirou algo.
Quer fazer negócio comigo? A rolinha por isso!
E mostrou a maior barra de chocolate que eu havia visto na vida.
Apanhei a rolinha por uma das perninhas e entreguei a ele. Já sentindo o gosto do doce na boca mordi o chocolate. Que delícia!
Quer ver uma mágica?
Parece que ele sabia tudo o que eu gostava. Duas vezes meu pai tinha me levado no circo e eu vibrara com as mágicas de Mister não sei o que. Um nome esquisito. Eu só sei que ele tirava coelhos do chapéu. Fazia as cartas do baralho mudar de naipe. A bengala virar um lenço colorido.
Antes mesmo de responder se queria ou não, colocou a rolinha na palma da mão e tocou-a com a ponta do dedo.
Milagrosamente ela se esticou, como se espreguiçasse, olhou na minha direção e voou.
Como fez isso? A curiosidade era grande.
Ele apenas sorriu com os olhos.
Será que eu tinha me enganado e não tinha matado a rolinha? Não! Não podia ser! Eu tinha certeza que tinha acertado ela bem na cabeça e ela estava morta. Mortinha da silva!
......................................................
Meu pai gostou dele, minha mãe não. Ela nunca gostara de estranhos, vivia dizendo para quem quisesse ouvir. Minhas irmãs não sei, não falaram nada. Já eu, bem. . . eu estava fascinado. Nunca havia visto ninguém como ele.
Meu pai só poderia ter gostado dele. Não via a hora dos compradores chegarem para ouvir as novidades. Acho que sabia que era enganado na hora de pesar as mercadorias, sempre pagavam menos do que ele calculava antes. Bem menos. Mesmo assim convidava para entrarem, pedia para a mãe caprichar na comida, servia uma pinguinha caseira e ficava ali sentado, os olhos brilhando, ouvindo eles contarem das coisas da cidade grande.
Nessa noite, a primeira que ele passou com a gente, dormiu cedo. Percebi o ar de decepção no rosto do velho antes de resmungar alguma coisa ininteligível e ir lá fora fumar um cigarrinho de palha. Consegui apanhar apenas um”Desgraça. Nem contou nada pra gente” no ar e mais nada.
Manhã cedo acordei com um barulhão danado.
Me vesti rápido e fui pra janela. Tanto meu pai quanto minha mãe estavam espiando ele ordenhar as vacas de um jeito esquisito, elas berrando de dar gosto. Mais de uma vez derrubou o balde com o leite . Achei estranho meu pai achar engraçado em vez de ficar bravo. Cada gota de leite derramado era um pouco mais de prejuízo e foi aí que tive certeza que gostara mesmo dele. Se fosse comigo a vara de marmelo ia cantar nas pernas. E ficou mais contente ainda ao não ouvi-lo dizer que ia embora. Deve ter imaginado que ficaria um tempão.
E ficou. Fazendo com que aqueles anos fossem os melhores da minha vida.
Fazia de tudo. De um jeito todo atrapalhado, mas fazia. Cortava lenha. Ajudava na roça. Tirava água do poço. Até ajudava nas coisas da cozinha apesar da cara feia da mãe.
Mas o bom mesmo era à noite, quando a gente se sentava em volta dele e ouvia as histórias. Reais, dizia, minha mãe sacudindo a cabeça não acreditando, mesmo assim não arredando o pé. Ouvindo tudinho.
Eram histórias estranhas. Uma cidade habitada só por mulheres que saiam durante a noite para roubar crianças nas cidades vizinhas.
Uma ilha onde os habitantes eram metade gente, metade pássaros. Uns nascendo de ovos, outros de maneira normal, convivendo normalmente entre si sem preconceitos, racismos e outros males.
Templos enormes dedicados a deuses desconhecidos por nós. Ele dizia os nomes, pouco adiantando , com suas paredes revestidas de placas de ouro, os lustres, diamantes gigantes armazenando a luz do sol para refleti-lo quando a noite chegava.
Cidades grandes, mas tão grandes e tão apinhadas de gente que por mais que se andasse nunca se chegaria ao final. Naves espaciais rasgando os céus levando pessoas para conhecerem outros mundos, outros universos paralelos ao nosso.
Cidades construídas no fundo dos mares, seus habitantes sobrevivendo de peixes e planctos.
Mas a que eu mais gostava e pedia sempre que contasse de novo era a história de um lugar num outro planeta( ele mostrava para a gente a estrela que era o sol de lá) que um dia cismaram de mandar alguém para ver como vivíamos. Mas o viajante perdera sua nave espacial ao entrar na atmosfera e não podia voltar. Isto é: até mandarem outra nave resgata-lo.
Muitas vezes eu o vi de olhos vermelhos ao contar que nesse lugar tudo era diferente. As árvores eram de uma tonalidade cor de rosa. Os animais completamente diferentes dos nossos. Até as leis físicas eram outras. Contava que as pessoas desse lugar faziam coisas que se ele contasse ninguém acreditaria.
Minhas irmãs recostavam-se umas nas outras.
Meu pai arregalava os olhos pedindo mais histórias.
Minha mãe negaceava com a cabeça como a dizer”como é que pode?”
E eu. . . Bem, eu vibrava! E imaginava na minha mente todas as histórias acontecendo, tentando ver com os olhos do pensamento as pessoas, os lugares, as coisas.
Um dia foi embora.
Todo mundo acordou pensando encontrar ele fazendo errado alguma coisa banal no sítio, só que não o achamos em lugar nenhum. Não deixara nada escrito. Nenhum recado. Nenhuma mensagem. Nada
Eu o procurei por toda parte já sentindo sua falta durante o dia. A noite foi pior.
Será que o magoamos com alguma coisa? Minha mãe comentou lavando os pratos do almoço. Depois não disse mais nada, mas acho que tinha começado a gostar dele também, como a gente.
Ouvi minhas irmãs rezando para que voltasse.
Meu pai não disse nada. Bem, quase sempre dizia nada quando as coisas davam errado mas eu podia ver que ficara chateado com a ausência dele. Naquelas horas da noite, quando a gente sentava para ouvir as histórias muitas vezes peguei meu velho de olhar comprido no espaço vazio à frente, onde ele se sentava de pernas trançadas. E numa noite vi uma lágrima escorrendo do canto do olho dele. Só que quando viu que eu tinha percebido praguejou contra os mosquitos que machucavam os olhos das pessoas. Mas não havia nenhum mosquito na varanda!
As mangas amadureceram. Os parentes apareceram como sempre no Natal. Vieram as chuvas e depois o tempo de frio. Alguns animais pariram filhotes lindos. Mas nada disso servia para alegrar a gente. Tudo era triste. Cinzento.
Foi quando minha irmã mais nova teve as dores.
Ninguém sabia como ou porque as dores chegaram, só sabíamos que minha irmã rolava na cama, gritando e gemendo todo minuto do dia.
Minha mãe apanhou as ervas conhecidas, fez as maceragens mas não adiantou nada. Então selei o cavalo e fui no sítio da velha Siriaca que conhecia todo tipo de doença mas quando voltei ele já tinha voltado e estava sentado na beirada da cama. Minha irmã se retorcendo de dor, pediu permissão para o pai, depois para a mãe e só depois colocou a mão na barriga dela onde as dores eram mais fortes. Fechou os olhos. Falou umas palavras que ninguém sabia o que queriam dizer. Apenas isso, e as dores foram embora.
Eu nunca havia visto meu pai abraçar alguém – nem minha mãe – na frente nossa, mas eu juro: com os olhos mareados de lágrimas abraçou ele e chorou como se fosse uma criança. Acho que de alegria por ter voltado.